Fonte: panoramio.com |
O sol já ia
alto quando Mamadú e Cau Tcherno se
apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam
entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado
direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo
do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça.
Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as
tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene.
Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião
propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe
pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz
com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida
moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via
os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos
burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter
encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...
Acelerou o passo
quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.
–
Sala malecum – disse Mamadú retirando
o súmbia.
–
Malecum salam – retorquiu o outro.
Sucederam-se em
seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas.
Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher
Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....
–
O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em
que cada
um dos presentes
se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém
constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu
visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com
isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú
lhe oferecia.
Aos poucos,
atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao bentém
os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos
cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram
trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos
presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava
responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa
delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota
na tabanca.
Terminados os
cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande
passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.
– Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão.
Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o
também para os dele.
Serifo
perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de
desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.
O homem grande prosseguia o seu discurso:
– Tenho um grande respeito pela
tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei
que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos
do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é
deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e
força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que
ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes
faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre
dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um
“hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.
– Mamadú, que está aqui sentado,
filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de
ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma
pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo
levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão
interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um
reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a
quem nada faltará.
Mamadú ia
aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que
se alternava com
o movimento do tique da direita para a esquerda.
– De que filha minha estás a
falar, Cau Tcherno?
– Da... da Ádama – cortou
abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.
– Hum... – fez Serifo num mugido
quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da
moça.
– Essa mesma! – respondeu
apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a
pequena.
– Hum... – voltou a fazer o pai
da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois
se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma
das filhas em
casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o
suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser
respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse
casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos
anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a
resposta para não trair os seus pensamentos.
– Dá-me uns dias para pensar –
disse fingindo um ar distraído.
Mamadú tirou do
bolso três nozes de cola e ofereceu-as a
Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os
presentes.
Após a partida
dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua,
mãe de Ádama.
– Debo! – disse da porta metendo a cabeça
dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a
mulher do interior.
E, puxando o
banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.
–
Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na
varanda.
Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para
fora as extremidades das suas quatro tranças.
– Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho
que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.
Era verdade que
Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo.
Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu
agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas
nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que
nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar
um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil
encontrar nos tempos que corriam.
– Acho que tens razão. Ao menos
ele é rico... – disse Nem Aua
esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que
valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava
tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por
ela mesma não saber...
A notícia foi
acolhida pelos grandes da morança com
satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada,
sim senhor! Um cunhado que valia a
pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o
telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma
fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não
aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama!
Deus, obrigado!
A noiva foi a
última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú.
– Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo
não vai acabar! Tu vais te
habituar! A vida
é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles
nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi
arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do
casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos
arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que
ganha!
– Com aqueles tiques todos... –
quis contrariá-la a filha.
– Isso é obra de Deus, minha
filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e
que não lhes falta com nada!
Ádama não voltou
a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do
poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua
mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô
Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito
rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a
vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente
tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que
podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não
havia na morança par mais harmonioso.
Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala! Inspirou profundamente e
passou a mão pelo rosto. Nem Aua
observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse
mais para si do que para a mãe:
–
Djitu câ tem... – e voltou às suas
lides domésticas.
Glossário
Badjuda (t.crioulo): menina, rapariguinha.
Bentém (t. crioulo): lugar coberto com esteiras, onde os habitantes da morança se
reúnem para conversar e onde em geral são recebidas as visitas.
Bubu: camisão.
Cau (t. fula) : tio.
Crintim (t. crioulo): cerca feita em esteira.
Cunhadaria (t. crioulo, de cunhado; cunhado: qualquer membro
da família por aliança: sogro, cunhado, genro, concunhado...): família por
aliança.
Debo (t.fula): mulher.
Djam’tum: (exp.fula): estou bem, está tudo bem.
Djarama (t.fula): obrigado.
Djumbâi (t. crioulo): encontro para conversa.
Falar mantenha: cumprimentar.
Homens grandes: homens idosos.
Mandjuas: pessoas da mesma geração, muitas vezes que cresceram juntas.
Mantenhas (t. crioulo): cumprimentos.
Mara cassamenti (expressão crioula, trad. literal :
amarrar o casamento) : pedido de casamento, oficialização do
noivado; a noz de cola é oferecida simbolicamente ao pai da noiva pelo noivo ou
seus familiares.
Morança : conjunto de habitações pertencentes à mesma família.
Nem (t. fula): mãe.
Sala malecum (exp. árabe): que a paz esteja contigo.
Malecum salam (exp. árabe): que contigo esteja a paz.
Súmbia: espécie de boné.
Djitu ca tem(exp. crioula que indica resignação): não há outra
solução; paciência.
Tenho dificuldade em classificar este texto como crónica ou como conto, mas diria que há uma associação simbiótica entre ambos os géneros. Literariamente bem conseguida, a narrativa joga harmoniosamente no tempo e no espaço com todos os ingredientes sociais e psicológicos, dando-nos a conhecer a força de uma ancestralidade que perdura para lá de qualquer suposta evolução, não fosse ela, a ancestralidade, temperada pela presença imanente da religião islâmica em todos os actos da vida dos povos guineenses. Se não é este o retrato da realidade, era-o certamente ao tempo a que se reporta esta narrativa.
RépondreSupprimerNão conheço a Guiné porque as contingências da vida militar apenas me permitiram servir em Angola e em Moçambique, o suficiente para apreender um pouco da idiossincrasia dos povos da África continental. Mas, curiosamente, sempre ouvi contar factos sobre a Guiné, porque a minha mãe nasceu nessa então colónia (Bissau), filha de uma cabo-verdiana de S. Antão, que para la emigrou aos 20 anos, e de um cidadão francês (Adrien Soulé), ali radicado como gerente de uma firma francesa que então existia na Guiné e no Senegal. Este à parte serve apenas para dizer que a minha avó nos contava coisas da vida dos povos da Guiné de que me lembro bem, pelo que não tive dificuldade em penetrar no contexto social desta crónica.
Crónica ou conto, este texto é antes de mais um "pedaço" de uma realidade que infelizmente ainda persiste na Guiné-Bissau (e pelo mundo fora!) apesar das medidas que têm sido tomadas para se impedir os casamentos forçados. Associações e outras instituições têm acolhido jovens que fogem de casa para não serem casadas à força. Mas o poder da tradição ainda é grande e determinante, principalmente nas tabancas onde as moças dificilmente podem encontrar refúgio e apoio. Só o desenvolvimento (principalmente humano) poderá pôr termo a estas práticas e outras que fazem da mulher um ser sem direitos sobre a sua própria pessoa...
SupprimerFátima, continue a publicar as suas produções neste blogue, que muito agradece quem gosta de literatura. Eu propus-me intervir como crítico, não para fazer jeito à autora, que não é o que ela certamente pretende (nem ninguém), mas para alimentar um pouco a chama de um diálogo que, sem feedback, o blogue fica exangue, incompleto na intenção que lhe subjaz. Eu não tenho qualquer formação em literatura porque os meus conhecimentos na área das letras terminaram com o 5º anos do liceu (Gil Eanes), visto que a partir dali os meus estudos oficiais foram mais na área das ciências. Contudo, gosto de ler e imiscuir-me nas coisas literárias, e é como autodidacta que intervenho para apreciar o que veja aqui publicado. A opinião tem a subjectividade que necessariamente não pode deixar de revestir, como é aliás inevitável, e espero que não estranhe nem leve a mal se uma ou outra vez divergir da linha do seu pensamento criativo ou não conseguir a exegese mais correcta ou que corresponda às expectativas da autora. A verdade e a sinceridade, acima da amizade e consideração pessoal e como referência balizadora para cada um dar o que pode.
SupprimerAdriano,
SupprimerÉ para mim uma grande satisfação tê-lo como crítico dos meus trabalhos, seja qual for a sua opinião. Também não fiz estudos literários no meu percurso estudantil, pois depois do 5° ano do liceu segui a "alínea g" que se destinava a ciências económicas, curso que fiz. Tenho sim é um grande interesse pela língua portuguesa, procurando sempre aperfeiçoá-la. O gosto pela escrita veio-me um pouco tarde e quase que espontaneamente. Ela tem sido uma companheira nas horas difíceis e aos mesmo tempo uma forma de as ultrapassar como se de uma terapia se tratasse. Passe e comente sempre que quiser!