O galo lá fora já toca a alvorada. O meu corpo exausto
recusa, decididamente, o repouso benéfico do sono da noite. O silêncio reina no
meu quarto, depois de combatidos os últimos mosquitos que zumbiam aos nossos
ouvidos. Apenas ouço de vez em quando, muito subtilmente, um gemido de Aruna, o
meu codé de quatro anos, que deitado ao meu lado, trava há três dias uma luta
aguerrida contra as febres do paludismo. Três dias de espera pelo mézinho, que
foi necessário ir-se buscar ao Gabu.
Neste meu sofrimento de parida, mas na sabura da
maternidade, vou deambulando, em noite de insónia, pelas estradas da vida, nem
sempre retas e na maior parte das vezes tortuosas... Volto à minha infância,
despreocupada até eu perceber que a vida tem decisões que não são nossas... Não
foi minha a decisão de me casar com o meu marido... Não foi, não! Não era ele
que eu amava e esse casamento impediu-me de me casar com Aliu, esse sim, o
homem da minha vida! Impediu-me de me unir a ele, mas não de deixar de amá-lo
secretamente, no fundo da minha dor e do meu ser. Ah! Aliu! Por onde andará?
Disseram-me que partira para a terra branco, em busca de melhores dias... Nunca
mais soube dele, mas jamais esquecerei o seu olhar desesperado quando me
viu a ser levada à força para a casa do meu noivo... Quanta dor partilhada!
Quanta revolta acumulada! Nunca mais o vi, mas nunca deixei de o amar...
Apalpo a testa de Aruna. Parece-me menos quente e o
molhado da minha mão assegura-me que a febre está a baixar. Esperança Deus!
Bendito nhu Dimingo, que foi até ao Gabu buscar esse milagroso mézinho do
hospital! Os mézinhos da terra nada tinham dado e Aruna definhava de dia para
dia. Foi assim que morrera a minha primeira filha, com estas febres sem fim e
que a levaram em menos de uma semana. Um arrepio percorre o meu corpo. Ah!
Deus, não me leves também o Aruna... Mas nhu Dimingo disse que ele ia ficar
bom. Esperança Deus! Nhu Dimingo é bom enfermeiro. Daqueles do tempo do tuga.
Bom que nem doutor! Mas nhu Dimingo está cansado. Os anos pesam e um dia ele
vai nos deixar. É a vida, mas nem quero pensar! O que será de nós em
Sintchã Baciro sem nhu Dimingu?
O dia está a clarear. Vejo uma pequena luminosidade
que passa através da palha do teto. Se estivesse a chover, teria a cama toda
molhada... Há duas chuvas que devíamos mudar a palha, mas não há dinheiro! A
vida está difícil, mal dá para comer. Já não me recordo de quando ainda
podíamos ter a janta e a ceia... Hoje contentamo-nos com uma única refeição...
Os tempos estão mesmo complicados. Foi preciso pagar o tratamento da minha
comborssa, Binta... Coitada, o que ela sofreu! Até o mouro do Gabú se sentiu
impotente perante aquele mal. Tudo tentou e nada conseguiu! Sim, conseguiu uma
coisa! Despojar o Demba das suas economias para substituir todos os tetos
da morança! Até que nhu Dimingo passou pela tabanca e viu Binta naquele estado.
Levou-a logo para o Gabú e Binta melhorou. Deus é grande! Deus, obrigada! Ah,
nho Dimingo, que Deus lhe dê longa vida e saúde!
O galo voltou a cantar e agora o quarto está mais
claro. Aquela fresta do teto precisa mesmo de ser tapada... Ah, bons eram os
tempos quando tínhamos um telhado de zinco. Foi em Bissau, onde vivemos cinco
anos. Demba tinha conseguido um trabalho de chofer numa loja de um siriano. Foi
primeiro ele, sozinho, e depois mandou-nos buscar. Binta não quis ir e fui eu
com os meus três filhos e os dois mais velhos dela. As coisas até não correram
mal. Os nossos filhos iam à escola e eu trabalhava como lavadeira para uma
senhora francesa. Conseguimos até fazer uma casa com teto de zinco! Aí não
havia chuva que entrasse! Até que a guerra chegou e tudo destruiu. A loja onde
trabalhava Demba ruiu sob um bombardeamento, a minha patroa foi para a terra
dela e, numa noite em que tivemos que fugir de casa por causa das bombas que
caíam no nosso bairro, a nossa casa foi completamente destruída! Tudo
desmoronou, a nossa casa, os nossos parcos haveres e a nossa vida! Tivemos que
voltar a Sintchã Baciro com os nossos sonhos empacotados... Ainda pensámos em
voltar para Bissau quando a guerra acabou, mas o patrão de Demba fechara o
negócio e fora para o Senegal. A minha patroa também não voltou mais... e
depois em Bissau as coisas não estavam muito seguras. As notícias que nos
chegavam eram desencorajadoras. Djumblemanes constantes, com os militares
envolvidos. O espectro da guerra sempre presente... E assim ficamos por cá. A
vida é difícil. Falta de tudo. Os filhos machos mais velhos foram estudar para
o liceu de Gabú. Estão em casa do meu cunhado, mas temos que pagar-lhes os
livros, o material, a roupa e os sapatos... O negócio de donetes e de unto, que
eu e a Binta montámos, quase não dá para nada. A vida da bolanha é dura. Depois
o lugar... semear e zelar para que as cabras dos vizinhos não venham comer as
nossas hortaliças que vamos vender na feira de Gabú... Os dias repetem-se,
iguais uns aos outros. A mesma labuta, pilar o arroz e o milho, ir buscar a
água à fonte. A semana do fogão... e dos deveres conjugais... tudo numa rotina
certinha, como dois e dois fazem quatro... Os meses passam e as chuvas vão
somando... No meu rosto rosto vou descobrindo as marcas do tempo e da vida. Já
vai longe o tempo da badjudessa...
É hora de me levantar. Aruna repousa agora
serenamente sem gemidos. Daqui a pouco terei que acordá-lo para lhe dar o
mézinho como indicou nhu Dimingo. Deixo-me estar mais uns instantes deitada...
Penso no futuro, essa incógnita que nos espera no virar de cada esquina, no
amanhecer de cada dia. Olho para trás e procuro no passado um indício que me
possa conduzir e confortar na minha marcha trôpega de tão embebedada que estou
com as pacandas da vida. Mas só vejo desolação e cataclismos elevados ao
expoente máximo da violência. Quero convencer-me de que isso não é mais do que
um pesadelo de uma noite de indigestão e que, ao sair esta manhã do meu quarto,
descobrirei a verdadeira realidade. Essa sim, o sonho tornado realidade de
todos quantos tombaram para que este chão viesse a ser a pátria grata dos seus
cidadãos. Por instantes deixo-me levar por essa ilusão, apenas o tempo de me
alimentar de esperança, o único sustento e reconforto da minha alma...