Fonte: jesusmodeon.blogspot.com |
Homenagem ao meu liceu*
Numa cidade à beira-mar plantada, vivia um homem muito garboso, pai de
muitos filhos de diferentes mães. Eram tantos os filhos que lhes perdera a
conta. Mas pai extremoso, ocupava-se de cada um como se fosse o único.
Com a sua numerosa prole, vivia no cimo de uma colina que dominava toda
a cidade. Da janela do seu quarto, passava horas a fio a contemplar o casario
que vira crescer a seus pés. Lembrava-se ainda dos tempos em que a sua morada
ficava isolada do burgo que via, aos poucos, vir ter com ele. Do que mais
gostou, foi do jardim construído mesmo à frente da sua porta, resvalando pela
encosta da colina num colorido prazenteiro. Como ele se deleitava a passear por
esse jardim ao fim da tarde, quando o sol, de mansinho, se aproximava do
horizonte, tingindo o céu de um laranja ocre! Lá ia majestoso, rampa abaixo, no
seu impecável e imutável fato amarelo, camisa branca e gravata cor de tijolo,
condizendo com o chapéu do mesmo tom. Os sapatos pretos, cuidadosamente
engraxados e polidos ao som dos estalidos dos movimentos do pequeno graxa que,
religiosamente, uma vez por semana, ia à sua casa para tão nobre tarefa, davam
o toque final àquela elegância ímpar nas redondezas. Deixava atrás de si, um
leve odor a água de colónia, que em dias de chuva se misturava com o cheiro da
terra molhada.
Durante muitos anos viveu feliz com os filhos. A eles transmitiu o que
sabia e os valores que defendia. Procurou dar-lhes uma educação esmerada,
preparando-os para a vida. Comprazia-se ao vê-los cúmplices nas suas
brincadeiras inocentes, que fingia não perceber. Mas estava atento aos
problemas de cada um e todos eles sabiam que, além de um pai, tinham nele
também um amigo e confidente. Orgulhoso, via-os crescer, tornarem-se homens e
mulheres robustos, prontos a enfrentar os desafios do destino.
Um dia, chegou a guerra e a tranquilidade da família ficou abalada. O
pai deu-se conta que preparara os seus filhos para tudo ... menos para uma
guerra! O pânico instalou-se e muitos dos filhos decidiram partir. O homem do
fato amarelo, com lágrimas nos olhos, tentou ainda dissuadi-los:
- Mas para onde irão vocês, meus filhos? Esta é a nossa terra! Se partirem jamais se sentirão em casa em sítio algum...
- Vamos para a terra das nossas mães... - responderam decididos, mas sem conseguirem esconder a mágoa daquela decisão. - Não queremos a guerra e impotentes para evitá-la, preferimos partir!
- Mas para onde irão vocês, meus filhos? Esta é a nossa terra! Se partirem jamais se sentirão em casa em sítio algum...
- Vamos para a terra das nossas mães... - responderam decididos, mas sem conseguirem esconder a mágoa daquela decisão. - Não queremos a guerra e impotentes para evitá-la, preferimos partir!
Para trás deixaram o pai e os irmãos que não puderam ou não quiseram
partir. Novos mundos percorreram e novos mundos descobriram. E a profecia do
pai se confirmou: apesar da paz e da vida equilibrada que conseguiram
construir, jamais se sentiram em casa em parte alguma. O país onde nasceram e
do qual haviam partido, assombrava os seus sonhos, qual alma penada buscando o
caminho do paraíso. Com a distância e a saudade, as recordações da infância
tornaram-se magnânimas, perfeitas e inigualáveis!
Os anos foram passando e a guerra eternizando-se. Na casa do alto da
colina, os efeitos da guerra faziam-se sentir. Os filhos traziam agora, o rosto
marcado por anos de privações. O pai envelhecia de dia para dia, consumido pela
doença que lhe comia as entranhas. Seus ossos estalavam ao mínimo movimento. O
coração perdia-se numa arritmia desenfreada. Sofria do corpo e da alma. A
garbosidade de outros tempos, dera lugar a uma prostração quase permanente.
Sentia já os filhos órfãos, por não poder ser-lhes de préstimo algum. Era ele
agora que dependia deles. No seu leito, apenas uma coisa aguardava: a morte que
o viesse libertar daquele sofrimento. Não mais voltou a espreitar a cidade pela
janela do seu quarto, ou a descer o jardim da encosta. O seu fato amarelo
tornara-se deslavado e lá estava num cabide, pendurado no prego da parede. Os
sapatos perderam o brilho e o graxa nunca mais viera poli-los. Agora sem uso,
jaziam de baixo da cama, cobertos de pó. Os filhos olhavam para o pai com uma
tristeza impotente. Sabiam-no muito doente, mas o que fazer? O médico que viera
vê-lo, havia uns tempos, dissera-lhes que só com muito dinheiro se poderia
fazer um tratamento, na nova clínica privada da cidade. Onde ir buscar esse
dinheiro? Os magros salários reunidos, mal chegavam para acalentar a fome de
cada dia... e desalentados continuavam a ver o pai morrer.
Quando a guerra acabou, o pai já quase não tinha forças para se levantar
e foi na cama que festejou com os filhos a tão esperada paz. Agora só lhe
faltava uma coisa para poder partir serenamente: rever os filhos ausentes! Por
onde andariam? Nunca mais tivera notícias deles!
Então, nasceu o sonho!
- Porque não tentarmos saber por onde andam os nossos irmãos? Talvez
eles possam ajudar-nos a tratar do nosso pai e que maior alegria poderíamos
dar-lhe, senão fazer com que voltasse a ver os seus filhos? – a ideia foi
lançada por um e abraçada por todos.
Nas terras longínquas, os irmãos receberam a notícia de que seu pai
estava moribundo e que o seu último desejo, seria reunir uma derradeira vez
todos os filhos. E numa só voz responderam presente. O regresso à terra natal
não se fez esperar! A alegria de voltarem a ver o pai e os irmãos, atenuava a
tristeza de não reconhecer naquela cidade, a que os vira nascer. Vieram todos
com a missão de trazer de novo o pai à vida e logo no dia seguinte à chegada,
levaram-no cuidadosamente para a clinica nova da cidade. Comovido pela alegria
de rever os seus e esperançado em poder restabelecer-se, o velho entrou na
clínica pelo seu próprio pé, num esforço que ninguém mais pensava de que ele
ainda fosse capaz. Sentou-se numa cadeira que lhe indicaram e com a voz ainda
trémula, disse à jovem enfermeira que o recebera:
- Quero ver um doutor, o melhor que vocês cá têm, porque esta velha
carcaça que carrego, precisa de umas mãos experimentadas para voltar a pôr tudo
no lugar. Agora que os meus filhos estão todos reunidos, quero viver para ver
crescer os netos que me deram.
- Sem dúvida, sem dúvida! – respondeu a enfermeira – Mas antes, temos
que fazer a sua papelada. Ora, diga-me lá o seu primeiro nome.
O velho endireitou o tronco, limpou a garganta e respondeu numa voz
segura e sonora:
- Salvador Correia.
- E o seu último nome?
- Mutu Ya Kevela.
* Liceu Salvador Correia, Luanda, Angola, atualmente Escola Mutu Ya Kevela
Filomena, enquanto lia não acreditava que pudesse ter publicado nesta página uma história de linearidade tão ingénua e tão pueril, que se aceita num jovem aluno dos primeiros anos do liceu (Salvador Correia) mas jamais num intelecto amadurecido e experiente. Mas, no fim, tudo se recompõe e se justifica ao perceber-se que se trata de uma fábula em que a figura central é o liceu Salvador Correia, de Luanda, que passou por tratos de polé, presumo eu, pelas vicissitudes da lamentável guerra civil angolana.
RépondreSupprimerAdriano, este texto foi-me inspirado há uns anos atrás quando a Associação dos Antigos Alunos do LSC em Portugal aventava a ideia de levar a cabo um projeto de "reparação" do liceu, cujas instalações estavam (estarão ainda?) muito degradadas. Daí o regresso dos "filhos pródigos". Uma situação que não está longe da do vosso Liceu Gil Eanes...
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