A tarde estava calma e
cálida. Maria Rita acelerou o passo em direção à praia, para cumprir aquilo que
se tornara num ritual desde que viera “retornada” do “Sul”, da sua Angola
natal. Ao deixar para trás a vila, procurou com o olhar a “sua” rocha, um
pedregulho que, entre muitos outros, desponta da areia branca e perto do qual
vêm desmaiar as ondas do mar. Ora mansas ora furiosas, tal como ela face ao
destino que a vida lhe reservara. Ali estava a rocha, majestosa e livre. Teve
sempre a sorte de nunca a encontrar ocupada, como se àquela hora o lugar lhe
estivesse reservado...
Trepou para a pedra e
instalou-se. A praia estava deserta. Ao
longe dois pescadores puxavam para fora do mar um pequeno bote. Maria Rita
sorriu. Faziam-na lembrar-se do velho pescador que muitas vezes encontrara na
praia diante da Igreja do Cabo, na ilha de Luanda, fumando o cigarro ao
contrário, isto é, com a ponta acesa dentro da boca! “Ele não se queima?”,
perguntava maravilhada à mãe todas as vezes que o encontrassem. Esse episódio
fazia agora parte de um passado que para ela deixara de ter futuro por ter
acabado naquele dia em que, precipitadamente, embarcara na ponte aérea para
fugir à ameaça da guerra.
Olhou para a linha do
horizonte e estendeu o braço como se quisesse alcançá-la. Talvez agarrando-a, apanharia esse passado
que ficara para lá do oceano, repleto das brincadeiras no bairro da sua
infância e dos primeiros sonhos das fantasias da adolescência. Para lá do
oceano deixara um pedaço de vida que teimosamente se negava a colar-se ao que
veio depois.
Fora difícil aquela
partida, uma ruptura que ela recusava-se a aceitar por não ter sido escolha
sua. E desde então vivia em permanente revolta. Consigo e com todos! Apenas com
o mar se acalmava e quanto mais bravo ele estivesse mais serena se sentia, como
se ele a domesticasse. E era por isso que ali vinha todas as tardes, para
conversar com ele e ouvir os seus conselhos. O mar que se tornara no seu
confidente, o único amigo que a entendia. E naquela tarde precisava muito de
falar com ele, porque necessitava da sua ajuda. Talvez ele pudesse levá-la de
volta, para trás da linha do horizonte...
– Ó, Mar, meu amigo,
porque não me levas de volta à terra onde nasci? Deixa-me embarcar nas tuas
ondas... Por favor, meu amigo! – disse-lhe em pleno desespero.
– De que queres tu
fugir, Maria Rita? – perguntou-lhe o mar com uma voz rouca.
– Deste lugar!
– Mas este lugar é teu!
– Meu? Não sou de cá!
– Mas é a terra dos teus
pais e, por conseguinte, a tua também...
– Minha? Como, se não a
conheço?
– Como não a conheces?
Os teus pais nunca te falaram dela?
– Sim..., mas eu nunca
estive cá. Não conheço ninguém... Os meus amigos ficaram lá. A minha vida ficou
lá! Nada aqui me faz lembrar do meu passado!
– O teu passado! Falas
como se a tua memória te impedisse de te lembrares dele e que precisasses de
algo que te faça recordar! Se lhe tens tanto apego, porque necessitas que te
refresquem a memória? – indagou o mar irónico.
Maria Rita ficou em
silêncio durante uns instantes, com o olhar perdido na onda que se aproximava
da rocha e que ao bater nesta respingou molhando-lhe o rosto.
– Eh! Ó Mar! Porquê
tanta fúria? Estás zangado comigo?
– Zangado eu? Porquê? Tu
é que estás zangada contigo! Não sei se já te tinhas apercebido disso...
– Como posso estar
zangada comigo mesma? E por que razão?
– Isso queria eu
saber...
A jovem mergulhou num
novo silêncio. Essa agora de estar zangada consigo mesma! O mar saía com cada
uma! Como podia alguém estar zangado consigo mesmo?
– Não me respondes? –
insistiu o oceano.
– Que queres que te
responda, se nem sequer compreendo a tua pergunta... O que queres dizer com
isso de eu estar zangada comigo mesma?
– Não querendo aceitar a
tua nova vida, pões o teu presente em conflito com o teu passado. Divides a tua
vida em duas vidas, totalmente distintas e sem qualquer ligação entre elas.
Esqueces-te de que tu és a portadora de ambas e que elas vivem em ti. Não é por teres
partido de um lugar que o teu passado se perdeu. A menos que te tenhas tornado
amnésica... – Acrescentou num tom de troça antes de continuar:
– Sabes, Maria Rita,
contrariamente ao que possas pensar, és uma pessoa com muita sorte!
– Com muita sorte? Que
disparate! Hoje só dizes tolices! Como posso eu ter muita sorte se me sinto a
mais infeliz das criaturas? – perguntou com um fiozinho de voz que traía a
emoção que lhe vinha da alma.
– Muita sorte tens tu,
sim! Já imaginaste a riqueza que transportas em ti?
– Riqueza? Viemos com
uma mão à frente e outra atrás e ainda tens a lata de me falar em riqueza?!
– Riqueza sim, minha
filha, e daquela que nunca se perde por ser interior. Vens de outros
horizontes, de outras culturas e de outras vivências que de certa forma
assimilaste. Isso jamais sairá de ti. Tens também a vantagem de pertencer
geneticamente a um povo que mesmo em terras distantes preserva ao longo das
gerações os valores fundamentais da sua cultura...
– Não é por ter comido
catchupa e ouvido mornas e coladeras que assimilei a cultura caboverdiana... –
interrompeu-o com uma certa irritação e na defensiva.
– Aí é que te enganas,
Maria Rita, essa catchupa e essas mornas e coladeras eram apenas a parte
visível do iceberg! A educação que recebeste dos teus pais não era angolana!
Era caboverdiana! A mesma que eles tinham recebido antes de partirem daqui. Não
quero, porém, dizer que tenhas que te sentir unicamente caboverdiana, uma vez
que viveste também uma outra realidade e que te tenhas identificado com Angola.
E a propósito, se entendes que a catchupa não pôde fazer de ti uma
caboverdiana, achas que o funge fez de ti uma angolana? – E o mar riu-se às
gargalhadas.
Maria Rita amuou e
preferiu não responder. Voltou a fixar o horizonte de testa franzida enquanto
refletia no que o mar acabara de lhe dizer. Ele tinha uma certa lógica... que
ela não conseguia seguir. Esfregou o nariz como sempre fazia quando tinha uma
dúvida e não sabia o que decidir. “O que queria ele dizer com isso tudo?” –
murmurou entre dentes.
– O que quero com isso
dizer, minha amiga? – reagiu o mar atento. – Simplesmente que tu não precisas
de negar a tua caboverdianidade para guardares a tua angolanidade! E é essa a
tua riqueza que jamais alguém poderá roubar-te. A tua vida de hoje é um
prolongamento da anterior. Não é uma outra vida, mas sim a mesma que continua
num novo país que deves aprender também a amar.
– E a minha pátria? Qual
dos países será a minha pátria? – perguntou arrebatadamente.
– Isso é importante para
ti?
– É sim e muito! Toda a
gente tem o direito de ter uma pátria, não? – Uma certa irritação denotava o
estado da sua alma.
– Então, mais feliz
ainda serás quando descobrires que tens uma super pátria!
– Uma super pátria? O
que é isso? Acho que estás a ficar louco de tanto beberes todo esse petróleo
que vazam em ti...
Pela primeira vez Maria
Rita esboçou um sorriso desde o início da conversa dessa tarde. Fora uma
ocasião para provocar o mar sempre tão seguro de si. Mas o oceano fingiu não
perceber a piada para não desviar a conversa para um outro debate e prosseguiu:
– É como te digo! Uma
super Pátria, uma terra de sonho, situada algures num mundo imaginário e
desprovido de uma dimensão terrestre. As suas fronteiras abraçam, ao mesmo
tempo, a época da tua infância e adolescência e a tua vivência atual, tudo numa
perfeita harmonia, sem discriminações, sem exclusões, por ser o país criado
para ti. Só para ti.
– Estás completamente
louco! Uma pátria imaginária? Onde já se viu isso?
– Ela será imaginária
enquanto não a aceitares... pois ela existe em ti. É uma verdade que não deves
ignorar se realmente quiseres ter serenidade na tua vida. O nosso passado só
nos serve quando nos pode ser útil para o presente e o futuro. Se o fecharmos
num compartimento, mesmo que seja forrado de ouro e diamantes, não nos serve
para nada. Deixa-o entrar no teu presente para que construas um futuro sereno e
harmonioso...
Maria Rita já não
escutava o mar que continuava a falar-lhe. A voz dele parecia cada vez mais
distante. Ela concentrava toda a atenção no que o mar lhe dissera, nessa pátria
imaginária que vivia nela. E se o mar tivesse razão? E se fosse ela que
complicava tudo? Sim, ele tinha razão! Nessa pátria imaginária ela encontraria
a sua Angola natal e o Cabo Verde dos pais, que de repente lhe pareceu menos
estranho e mais próximo, porque deixava o seu coração aproximar-se dele, de
mansinho, mas seguramente. Repentinamente sentiu-se invadir por uma alegria
jamais sentida. O mar tinha razão! Essa pátria existia e ela acabava de
descobri-la. Tinha que dizer isso ao mar e agradecer-lhe a forma como lhe
devolveu o passado que ficara para lá do horizonte... Pôs-se de pé sobre a
rocha e, colocando as duas mãos à volta da boca em guisa de um altofalante,
gritou:
– Obrigada, ó mar, por
me fazeres compreender o que eu negava ver e aceitar!
O mar não respondeu. Uma
onda que viera bater na rocha recuava tranquilamente para o largo. Maria Rita
insistiu:
– Estás a ouvir-me, ó
mar? Escuta meu amigo!
O oceano continuou mudo.
Aos poucos ela apercebeu-se de um barulho vindo das rochas. Voltou-se para trás
e viu a mãe que tentava equilibrar-se sobre as pedras à medida que avançava
para ela.
– O que fazes aqui,
Maria Rita? Procurei-te por toda a parte! Com quem estavas a falar? Não vejo
ninguém por aqui... Estás bem, minha filha?
– Oh, mamã, nunca estive
tão bem na minha vida! Dá cá a tua mão e vamos-nos daqui. Apetece-me ir ouvir
uma morna... e queria que a escutasses comigo!
– Uma morna..., mas que
morna, minha filha?
– Mar de Canal...
Maria Rita pegou a mãe
pela mão e desceram para a areia. Virou-se uma última vez para o mar e
piscou-lhe um olho num gesto cúmplice.