samedi 29 mars 2014

SAUDADES DO FUTURO

Vista interior do Liceu Salvador Correia, hoje Muto Ya Kevela (Luanda)


Dias há em que acordamos mais nostálgicos, a tal ponto que até do futuro sentimos saudades...

Do terceiro ao quinto ano do liceu, a minha sala de aulas era uma das salas das arcadas. Mais precisamente, a do meio da ala que ficava no átrio em frente à Reitoria. Nos intervalos, raramente me afastava da sala. Não era de grandes passeios, nos escassos 10 minutos que separavam as aulas. Deixava-me estar na turma conversando com uma ou outra colega ou, simplesmente, ia encostar-me a um dos pilares do corredor observando à volta: colegas que passeavam pelos corredores, grupos que se divertiam em amena cavaqueira, jogos no pátio, enfim tudo aquilo que se pode presenciar num intervalo escolar.

Porém essas lembranças esvaneceram-se na minha memória e, hoje, quando tento avivá-las, vejo tudo como num filme mudo acelerado. Apenas uma recordação se conservou nítida: uma parede amarela com manchas pretas, provocadas pela humidade. Era o canto superior da parede do Salão Nobre, que dava para o mesmo átrio que a minha sala de aulas, na extremidade da cantina.

Perguntar-me-ão: Porquê esse detalhe tão preciso? É certo que os meus olhos passaram por ele muitas vezes, mas há muitas mais coisas que devo ter visto o mesmo número de vezes. Só pode haver uma explicação: foi, sem dúvida, por um dia ter olhado para essa parede cheia de saudades do futuro... Recordo-me perfeitamente do momento em que fotografei na minha mente essa imagem, depois de me ter perguntado como, um dia, poderia simbolizar as minhas lembranças de todos os anos passados naquela casa. Foi então que me apercebi pela primeira vez desse detalhe naquela parede e, num flash, condensei nele as recordações que eu teria, no futuro, do meu liceu. Nesse preciso momento, realizei o quanto efémera era a nossa passagem pelo liceu, enquanto ele permanecia majestoso, geração após geração, formando os pilares de outras construções do Amanhã. Eu iria partir, mas aquelas paredes ficariam ali para sempre, acolhendo novas levas de jovens, como já vinha fazendo havia algumas décadas.

Para sempre? Naquele momento, estava segura que sim! Como abalar algo tão sólido como aquelas paredes robustas, assentes sobre os alicerces do saber? Nem a mancha escura na parede me deixou suspeitar o quão frágil o tempo e a História tornariam aquele edifício, ele pela usura e ela pelo destino.


Apenas uma coisa deve ter permanecido com o mesmo vigor, continuando a cristalizar recordações dos que entretanto por lá foram passando: um canto de parede amarela manchada de preto...

DESENCONTRO




 Carta aberta 

Meu amigo,

Já não sei como perdi o contacto contigo. Provavelmente por culpa minha. Não por negligência, nem por vontade, mas pelos imponderáveis da vida. Partiste primeiro, deixando-me saudades, que nem mesmo as longas cartas que, semanal e religiosamente me escrevias, podiam atenuar. Tinhas tanto para me dizer que enchias dez folhas e eu respondia-te numa página, por não conseguir contar-te o que via à minha volta. As nossas últimas cartas devem-se ter cruzado algures sobre o oceano, sem nunca terem chegado ao destino. Não voltei a ter noticias tuas e certamente não terás também entendido a ausência das minhas. E o passar dos tempos, trouxe-nos a ambos, a resignação ao silêncio mútuo.

Não nos voltámos a ver, mas recordo-te como se tivesse sido ontem que nos separámos. Tenho saudades dos tempos de liceu, da nossa amizade, da nossa cumplicidade...

Nunca cheguei a saber a verdadeira natureza dos teus sentimentos por mim, mas a imensa ternura no teu trato tornou bem fraterna a amizade que me ligava a ti. Houve quem suspeitasse de uma relação mais íntima que a simples amizade que nos unia e lembro-me o quanto isso te embaraçava, ao ponto de, durante algum tempo, deixares de vir cedo para o liceu, para esperares comigo pela abertura dos portões. Timidez ou... estaria alguém invadindo o teu jardim secreto e descobrindo o que querias ocultar? Inicialmente pensei na primeira hipótese, mas logo comecei a duvidar, quando descobri os meus dois fios de cabelo, um preto e outro branco (eh! nessa altura já os tinha!...), no teu livro de História. E como interpretar o apertar cerrado das minhas mãos pelas tuas, quando conversávamos à janela da sala de aulas ou debruçados na varanda sob as arcadas? Ou, ainda, o nome pelo qual só tu, tão ternamente me chamavas? E o teu meigo olhar de um verde cristalino? Amizade fraterna ou amorosa? Nunca soube! Talvez nunca tivesse tido a coragem de querer saber... por me sentir incapaz de corresponder aos teus sentimentos, se eles tivessem ido mais longe do que uma simples amizade...

Indubitavelmente, eu estava noutra... O meu coração batia, platonicamente, por uns olhos negros que nunca me olharam com a doçura dos teus, mas que me amarraram a um sentimento que jamais tinha tido ou voltei a ter por alguém. O sentimento cego da primeira paixão, que, por egoísmo de não ser consumada, não dá lugar a outro... Pergunto-me se alguma vez suspeitaste da sua existência. Nunca falei dele a ninguém por ser esse o meu jardim secreto...

Até que te foste, recusando a guerra que se avizinhava, enquanto eu pensava que era aquele o meu país de onde nunca sairia. Partir para onde?... Sonhos que depressa se desmoronaram... porque, finalmente também chegou a minha hora da partida, a hora di bai na língua das minhas raízes... E com ela se instalou a Ruptura... e viagens sem fim, dominadas pela sensação de estar em permanente passagem, que nem mesmo os alicerces criados na Pátria de adopção conseguiram amenizar. Desde então, a minha vida tem sido feita de chegadas e partidas, deixando pelo caminho amigos, lugares amados, trazendo comigo apenas as recordações, boas e más, que ao longo dos anos foram tornando cada vez mais pesada a minha bagagem.

Os anos correram e pergunto-me incessantemente por onde andarás. Como gostaria agora de poder escrever-te uma carta, desta vez bem mais longa que todas as que me escreveste reunidas! Como me faria bem poder contar-te o que foram estes anos de percursos cruzados que me transpuseram além fronteiras, num mundo onde a riqueza se encontra nos corações dos homens, por ser a que resulta da convivência entre diferentes culturas e sensibilidades! Nesse mundo em que o Homem, enquanto Ser Universal, convive com uma dicotomia antagónica: a força e a fragilidade de quem abraçou vários horizontes. A força, pelo acumular de vivências cruzadas que lhe permitem saber estar com os outros e a fragilidade, pelo gosto amargo que fica da sensação de não pertencer a lugar nenhum, por serem tantos os horizontes de referência... Num mundo em que cada um de nós, Filhos do Império, se reencontra na sua dimensão universal e redescobre, finalmente, a serenidade perdida no momento da ruptura...

Para te falar de tudo isso e do quanto lamento o nosso desencontro, eu queria escrever-te uma carta, como dizia o poeta...


samedi 8 mars 2014

CONFIDÊNCIAS COM O MAR






A tarde estava calma e cálida. Maria Rita acelerou o passo em direção à praia, para cumprir aquilo que se tornara num ritual desde que viera “retornada” do “Sul”, da sua Angola natal. Ao deixar para trás a vila, procurou com o olhar a “sua” rocha, um pedregulho que, entre muitos outros, desponta da areia branca e perto do qual vêm desmaiar as ondas do mar. Ora mansas ora furiosas, tal como ela face ao destino que a vida lhe reservara. Ali estava a rocha, majestosa e livre. Teve sempre a sorte de nunca a encontrar ocupada, como se àquela hora o lugar lhe estivesse reservado...
Trepou para a pedra e instalou-se.  A praia estava deserta. Ao longe dois pescadores puxavam para fora do mar um pequeno bote. Maria Rita sorriu. Faziam-na lembrar-se do velho pescador que muitas vezes encontrara na praia diante da Igreja do Cabo, na ilha de Luanda, fumando o cigarro ao contrário, isto é, com a ponta acesa dentro da boca! “Ele não se queima?”, perguntava maravilhada à mãe todas as vezes que o encontrassem. Esse episódio fazia agora parte de um passado que para ela deixara de ter futuro por ter acabado naquele dia em que, precipitadamente, embarcara na ponte aérea para fugir à ameaça da guerra.
Olhou para a linha do horizonte e estendeu o braço como se quisesse alcançá-la.  Talvez agarrando-a, apanharia esse passado que ficara para lá do oceano, repleto das brincadeiras no bairro da sua infância e dos primeiros sonhos das fantasias da adolescência. Para lá do oceano deixara um pedaço de vida que teimosamente se negava a colar-se ao que veio depois.
Fora difícil aquela partida, uma ruptura que ela recusava-se a aceitar por não ter sido escolha sua. E desde então vivia em permanente revolta. Consigo e com todos! Apenas com o mar se acalmava e quanto mais bravo ele estivesse mais serena se sentia, como se ele a domesticasse. E era por isso que ali vinha todas as tardes, para conversar com ele e ouvir os seus conselhos. O mar que se tornara no seu confidente, o único amigo que a entendia. E naquela tarde precisava muito de falar com ele, porque necessitava da sua ajuda. Talvez ele pudesse levá-la de volta, para trás da linha do horizonte...
– Ó, Mar, meu amigo, porque não me levas de volta à terra onde nasci? Deixa-me embarcar nas tuas ondas... Por favor, meu amigo! – disse-lhe em pleno desespero.
– De que queres tu fugir, Maria Rita? – perguntou-lhe o mar com uma voz rouca.
– Deste lugar!
– Mas este lugar é teu!
– Meu? Não sou de cá!
– Mas é a terra dos teus pais e, por conseguinte, a tua também...
– Minha? Como, se não a conheço?
– Como não a conheces? Os teus pais nunca te falaram dela?
– Sim..., mas eu nunca estive cá. Não conheço ninguém... Os meus amigos ficaram lá. A minha vida ficou lá! Nada aqui me faz lembrar do meu passado!
– O teu passado! Falas como se a tua memória te impedisse de te lembrares dele e que precisasses de algo que te faça recordar! Se lhe tens tanto apego, porque necessitas que te refresquem a memória? – indagou o mar irónico.
Maria Rita ficou em silêncio durante uns instantes, com o olhar perdido na onda que se aproximava da rocha e que ao bater nesta respingou molhando-lhe o rosto.
– Eh! Ó Mar! Porquê tanta fúria? Estás zangado comigo?
– Zangado eu? Porquê? Tu é que estás zangada contigo! Não sei se já te tinhas apercebido disso...
– Como posso estar zangada comigo mesma? E por que razão?
– Isso queria eu saber...
A jovem mergulhou num novo silêncio. Essa agora de estar zangada consigo mesma! O mar saía com cada uma! Como podia alguém estar zangado consigo mesmo?
– Não me respondes? – insistiu o oceano.
– Que queres que te responda, se nem sequer compreendo a tua pergunta... O que queres dizer com isso de eu estar zangada comigo mesma?
– Não querendo aceitar a tua nova vida, pões o teu presente em conflito com o teu passado. Divides a tua vida em duas vidas, totalmente distintas e sem qualquer ligação entre elas. Esqueces-te de que tu és a portadora de ambas e que elas vivem em ti. Não é por teres partido de um lugar que o teu passado se perdeu. A menos que te tenhas tornado amnésica... – Acrescentou num tom de troça antes de continuar:
– Sabes, Maria Rita, contrariamente ao que possas pensar, és uma pessoa com muita sorte!
– Com muita sorte? Que disparate! Hoje só dizes tolices! Como posso eu ter muita sorte se me sinto a mais infeliz das criaturas? – perguntou com um fiozinho de voz que traía a emoção que lhe vinha da alma.
– Muita sorte tens tu, sim! Já imaginaste a riqueza que transportas em ti?
– Riqueza? Viemos com uma mão à frente e outra atrás e ainda tens a lata de me falar em riqueza?!
– Riqueza sim, minha filha, e daquela que nunca se perde por ser interior. Vens de outros horizontes, de outras culturas e de outras vivências que de certa forma assimilaste. Isso jamais sairá de ti. Tens também a vantagem de pertencer geneticamente a um povo que mesmo em terras distantes preserva ao longo das gerações os valores fundamentais da sua cultura...
– Não é por ter comido catchupa e ouvido mornas e coladeras que assimilei a cultura caboverdiana... – interrompeu-o com uma certa irritação e na defensiva.
– Aí é que te enganas, Maria Rita, essa catchupa e essas mornas e coladeras eram apenas a parte visível do iceberg! A educação que recebeste dos teus pais não era angolana! Era caboverdiana! A mesma que eles tinham recebido antes de partirem daqui. Não quero, porém, dizer que tenhas que te sentir unicamente caboverdiana, uma vez que viveste também uma outra realidade e que te tenhas identificado com Angola. E a propósito, se entendes que a catchupa não pôde fazer de ti uma caboverdiana, achas que o funge fez de ti uma angolana? – E o mar riu-se às gargalhadas.
Maria Rita amuou e preferiu não responder. Voltou a fixar o horizonte de testa franzida enquanto refletia no que o mar acabara de lhe dizer. Ele tinha uma certa lógica... que ela não conseguia seguir. Esfregou o nariz como sempre fazia quando tinha uma dúvida e não sabia o que decidir. “O que queria ele dizer com isso tudo?” – murmurou entre dentes.
– O que quero com isso dizer, minha amiga? – reagiu o mar atento. – Simplesmente que tu não precisas de negar a tua caboverdianidade para guardares a tua angolanidade! E é essa a tua riqueza que jamais alguém poderá roubar-te. A tua vida de hoje é um prolongamento da anterior. Não é uma outra vida, mas sim a mesma que continua num novo país que deves aprender também a amar.
– E a minha pátria? Qual dos países será a minha pátria? – perguntou arrebatadamente.
– Isso é importante para ti?
– É sim e muito! Toda a gente tem o direito de ter uma pátria, não? – Uma certa irritação denotava o estado da sua alma.
– Então, mais feliz ainda serás quando descobrires que tens uma super pátria!
– Uma super pátria? O que é isso? Acho que estás a ficar louco de tanto beberes todo esse petróleo que vazam em ti...
Pela primeira vez Maria Rita esboçou um sorriso desde o início da conversa dessa tarde. Fora uma ocasião para provocar o mar sempre tão seguro de si. Mas o oceano fingiu não perceber a piada para não desviar a conversa para um outro debate e prosseguiu:
– É como te digo! Uma super Pátria, uma terra de sonho, situada algures num mundo imaginário e desprovido de uma dimensão terrestre. As suas fronteiras abraçam, ao mesmo tempo, a época da tua infância e adolescência e a tua vivência atual, tudo numa perfeita harmonia, sem discriminações, sem exclusões, por ser o país criado para ti. Só para ti.
– Estás completamente louco! Uma pátria imaginária? Onde já se viu isso?
– Ela será imaginária enquanto não a aceitares... pois ela existe em ti. É uma verdade que não deves ignorar se realmente quiseres ter serenidade na tua vida. O nosso passado só nos serve quando nos pode ser útil para o presente e o futuro. Se o fecharmos num compartimento, mesmo que seja forrado de ouro e diamantes, não nos serve para nada. Deixa-o entrar no teu presente para que construas um futuro sereno e harmonioso...
Maria Rita já não escutava o mar que continuava a falar-lhe. A voz dele parecia cada vez mais distante. Ela concentrava toda a atenção no que o mar lhe dissera, nessa pátria imaginária que vivia nela. E se o mar tivesse razão? E se fosse ela que complicava tudo? Sim, ele tinha razão! Nessa pátria imaginária ela encontraria a sua Angola natal e o Cabo Verde dos pais, que de repente lhe pareceu menos estranho e mais próximo, porque deixava o seu coração aproximar-se dele, de mansinho, mas seguramente. Repentinamente sentiu-se invadir por uma alegria jamais sentida. O mar tinha razão! Essa pátria existia e ela acabava de descobri-la. Tinha que dizer isso ao mar e agradecer-lhe a forma como lhe devolveu o passado que ficara para lá do horizonte... Pôs-se de pé sobre a rocha e, colocando as duas mãos à volta da boca em guisa de um altofalante, gritou:
– Obrigada, ó mar, por me fazeres compreender o que eu negava ver e aceitar!
O mar não respondeu. Uma onda que viera bater na rocha recuava tranquilamente para o largo. Maria Rita insistiu:
– Estás a ouvir-me, ó mar? Escuta meu amigo!
O oceano continuou mudo. Aos poucos ela apercebeu-se de um barulho vindo das rochas. Voltou-se para trás e viu a mãe que tentava equilibrar-se sobre as pedras à medida que avançava para ela.
– O que fazes aqui, Maria Rita? Procurei-te por toda a parte! Com quem estavas a falar? Não vejo ninguém por aqui... Estás bem, minha filha?
– Oh, mamã, nunca estive tão bem na minha vida! Dá cá a tua mão e vamos-nos daqui. Apetece-me ir ouvir uma morna... e queria que a escutasses comigo!
– Uma morna..., mas que morna, minha filha?
– Mar de Canal...
Maria Rita pegou a mãe pela mão e desceram para a areia. Virou-se uma última vez para o mar e piscou-lhe um olho num gesto cúmplice.