samedi 24 septembre 2016



A ROSA

                                  Foto:Libro abierto vintage con rosa seca— Foto de jannystockphoto


 -        Olha, vovó!
Maria levantou os olhos do tricô que fazia e olhou para a neta que, a um metro dela, a fixava de olhos arregalados e com um velho livro aberto nas mãos.
-         O que é? – perguntou sem perceber o ar atónito da pequena.
-         Ali no chão... vê o que caiu deste livro...
A velha senhora seguiu o olhar de Ana e deparou com uma rosa seca caída, quase junto ao seu pé. Serrou os lábios para disfarçar o ligeiro tremor que sentia invadi-los.
-         É uma rosa seca, vovó? - perguntou a pequena.
Maria aquiesceu com um breve sacudir de cabeça, sem poder articular uma palavra.
-         Quem a pôs aqui neste livro? – voltou a inquirir a neta.
Ana sabia o apreço que a avó tinha por esse velho livro. Amor de perdição, lia-se na lombada do mesmo. Desde que se lembrava de si, Ana recordava que sempre vira esse livro no mesmo lugar. Na primeira prateleira da estante da sala, no canto esquerdo. Lembrava-se também que ninguém tinha o direito de mexer nele e que era unicamente a avó que limpava o pó dessa estante para evitar que alguém fosse tentado a tocar no livro. “Por que não posso ler esse livro, vovó?”, perguntara-lhe um dia. “Esse livro é uma relíquia que deve ser conservada e se todos tocarem nele acabará por se despedaçar”, respondeu-lhe a avó, dando a entender que a conversa ficaria por ali. Com o passar dos anos, Ana esqueceu-se do livro proibido até aquele dia em que, querendo apanhar o livro que estava ao lado, desalojou-o involuntariamente quase deixando-o cair ao chão, se não tivesse tido a destreza de o apanhar antes. Mas durante a queda apercebeu-se que algo se desprendia do livro e viera poisar-se perto da avó.
Maria olhava muda para aquela película púrpura em que se tinha transformado a rosa que há mais de 40 anos havia guardado naquele livro. A rosa que simbolizava um parênteses da sua vida, guardado secretamente no canto mais recôndito do seu ser. Um parênteses que pensava ter fechado para sempre e que naquele instante brotava da sua memória com toda a violência de uma força oprimida. Sentiu um aperto no peito e uma enorme angústia apoderar-se dela. Pensou que fosse desfalecer e fechou os olhos. Uma imagem fusca surgiu diante de si. De início não distinguia o que via, mas aos poucos apercebeu-se de um rosto que tomava forma, à medida que o bater do seu coração acelerava. Ali estava o rosto que tanto amara e que tanto a fizera sofrer. E o pior é que depois de tantos anos, voltava a sentir a mesma dor como se o tempo não tivesse passado e deitado o bálsamo do esquecimento sobre as suas chagas... Num instante voltou a encontrar-se na pequena taberna do pai, onde ia de vez em quando dar uma ajuda ao balcão. Recordou-se daquela noite de grande chuva na ilha, em que um homem completamente molhado entrou na taberna à procura de um sítio para se abrigar. O pai, vendo o forasteiro naquele estado, propôs-lhe que mudasse de roupa, emprestando-lhe umas calças e uma camisa. “Sei que caberá nelas duas vezes, mas sempre ficará mais confortável do que nessa roupa molhada”, disse-lhe em tom de graça. Maria foi enviada a casa em busca do necessário enquanto o pai servia um grogue ao recém-chegado, para o aquecer depois daquela molha. Seguia com o coração em alvoroço, sem entender por que razão aquele desconhecido a tinha perturbado tanto. Belo homem, na verdade, mas que sabia ela dele para estar naquele estado entre a excitação e a intimidação? Regressou à taberna com a roupa e entregou-a ao destinatário. A sua mão roçou ligeiramente a dele quando este estendeu a sua para receber o vestuário. Um arrepio percorreu o corpo da jovem, que desviou ao mesmo tempo o seu olhar daqueles olhos penetrantes que a fixavam com doçura. A partir desse dia, o forasteiro aparecia todos os dias à mesma hora. Sentava-se à ponta do balcão e encomendava ora uma cerveja, ora uma água mineral. Maria passou a vir ajudar o pai com maior frequência e olhava com impaciência para a porta da taberna para ver chegar o novo cliente.
Um dia, depois de fazer a sua encomenda, ele dirigiu-se a ela como se a conhecesse há muito tempo. “Olá, Maria! Como vai o negócio?”. Surpreendida, ela ficou sem fala, sem saber o que responder. Vendo a atrapalhação da jovem, o homem reatou logo. “Desculpe-me, nem sequer me apresentei. Chamo-me Celso”, disse estendendo a mão. Maria respondeu ao cumprimento e esboçou um sorriso. “Queria agradecer-lhe pelas roupas do outro dia”, acrescentou. “Oh! As roupas são do meu pai...”, respondeu ela, dando-se logo conta que tinha dito uma evidência desnecessária. Celso riu-se e procurou descontraí-la: “Sim, mas foi você que teve a gentileza de as ir buscar e de pôr a secar as minhas”. Ela respondera-lhe com um sorriso e, alegando ir buscar a encomenda, afastou-se tentado ocultar a euforia que lhe vinha de dentro. Ele falara com ela e dissera-lhe o nome! Celso, Celso, Celso, repetira para si, não para reter o nome que sabia que jamais sairia da sua memória, mas sim para dar um nome ao personagem que invadira inesperadamente a sua vida. As idas quotidianas de Celso à taberna continuaram. Aos poucos, Maria foi-se sentindo mais à vontade e deixava-se estar em animada conversa com ele. Um dia ele propôs-lhe que fossem ao cinema e ela aceitou esperando ansiosamente por esse momento. Iria finalmente vê-lo fora da taberna e a sós! Nesse dia ele esperou por ela na esquina da rua com uma rosa vermelha na mão... Depois veio o primeiro beijo, o tempo dos primeiros afagos e da primeira entrega total e... última também...  Depois... o vazio, as horas intermináveis de esperas vãs. O vigiar constante da porta da taberna com  a esperança de se aperceber do vulto amado. Ele voltaria, ela tinha a certeza! O que se passara entre eles não poderia ser uma simples quimera. Eles amavam-se. Ela amava-o e ele lhe jurara amor eterno. Ele voltaria sim e ela esperaria por ele. Reviver os momentos que passaram juntos dar-lhe-ia a força necessária para aguardar pacientemente. Sentia ainda o calor da sua mão percorrendo-lhe o corpo, deixando-a numa doce excitação. Os beijos ardentes que trocaram e a comunhão dos seus corpos eram a prova da paixão que os unia. Ele voltaria, sem sombra de dúvida! Porém os dias passaram, as semanas somaram-se e os meses se instalaram e de Celso nem novas nem mandado. Sumido, sem deixar traços! Na ilha ninguém parecia conhecê-lo. Celso? Não, nunca ouvi falar, respondiam-lhe sistematicamente. “Talvez tivesse sido alguém desembarcado de um vapor e que regressara à sua origem”, alguém aventou um dia. Na verdade, uns meses atrás acostara na ilha um enorme navio que partira umas semanas depois. Maria recordou-se de um detalhe, um navio atracara no porto num dia de grande tempestade, precisamente no dia em que Celso irrompera molhado pela taberna... Então compreendeu que jamais o teria de volta e que ela apenas fora uma escala na sua vida, mais uma, certamente... Ela que o amara com todo o seu ser e a ele se entregara de corpo e alma. Ele partira sem se despedir dela, num silêncio cobarde, deixando-a só com as suas recordações e uma vida inteira de penitência pela frente, apenas por ter cometido o pecado de o amar sem reservas...
- Foste tu que a puseste aqui, vovó? – A insistência da neta fê-la voltar à realidade.
- Sim, há muitos anos... Colhi-a um dia num jardim. Era uma linda rosa vermelha muito perfumada. Não resisti a tanta beleza e resolvi arrancá-la da roseira. Na precipitação, nem sequer me apercebi que o caule estava cheio de espinhos...
- Não te picaste?
- Oh, sim! Nem imaginas a dor que senti! Mas valeu a pena, pois jamais encontrei rosa mais bela e perfumada em toda a minha vida...


Charenton le Pont, 30 de Abril de 2005