dimanche 26 janvier 2014

QUEM RI NO FIM, RI MELHOR




(Memórias do Liceu Salvador Correia)

Há pessoas que se prestam a serem os bobos da corte, naturalmente... inocentemente... ou... inconscientemente. Inconscientemente?

Estávamos no ano lectivo de 1966/1967, um daqueles anos em que as brincadeiras no Liceu Salvador Correia  não tinham ainda o gosto pronunciado pela irreverência e pela contestação conturbada dos meados da década de setenta. Imperava uma tradição de “brincadeiras a brincar”, transmitida de geração em geração, que ao longo dos anos se foi afinando e se tornou numa parte do “património cultural” daquela Casa. Coisas que nem ao demo lembrariam... O mínimo defeito, deslize ou desajustamento de um frequentador daquele recinto, dava logo lugar a uma alcunha que se impunha sorrateira mas definitivamente, passando mesmo a ofuscar o nome do alcunhado e varrendo-o das memórias, com o passar dos anos. Professores, alunos e contínuos foram vítimas dessa arte, pois, exigindo talento, arte não deixava de ser a de alcunhar o próximo. Gerações houve, indubitavelmente, que nunca souberam os verdadeiros nomes de certos professores, cujas alcunhas se instalaram uma ou duas décadas antes da sua passagem pelo Liceu...

Quem não se lembra do “Batata”? E quem se lembra do seu nome...? De onde lhe viera a alcunha?

O Batata foi, sem dúvida, um dos professores mais castiços que passou pelo Salvador Correia. Figura típica, saída direitinha de uma comédia “hollywoodiana”, tinha a má sorte de acumular duas deficiências, daquelas que os alunos não perdoam: via mal e ouvia pior! A conjunção destas duas particularidades não se notabilizou unicamente pela sua simultaneidade, mas sobretudo pela imbricação dos respectivos suportes correctores. É que o aparelho auditivo do mestre de português estava encaixado nas hastes dos óculos, onde reluziam fortíssimas lentes de míope. Da figura franzina, apenas sobressaía esse “aparelho” audiovisual, seu único meio de sobrevivência na selva salvadoriana, mas simultaneamente, instrumento da sua perdição nas mãos de imperdoáveis predadores, os seus cândidos alunos.

Foram inúmeras as partidas pregadas ao Batata. Ele fazia parte dessas pessoas que inocentemente, inconscientemente, passavam por ser o palhaço de serviço. Mas... fazia mesmo?

O terceiro período daquele ano lectivo chegava ao fim. Os últimos pontos estavam à porta e representavam a derradeira chance para muitos dos que nos trimestres anteriores tinham ficado aquém do dezito. Não abundando o amor aos livros de estudo, a passagem de ano teria que ser conseguida de outra maneira. Eh! Cada um amanha-se como pode! E o 5°E, onde a maioria dos alunos fazia já parte do mobiliário do Liceu, deitando as contas à vida,  resolveu salvar o ano com a “ajuda” do Batata. Bastava cortá-lo do mundo e a situação estaria controlada. Claro está que, para isolá-lo, era só necessário desembaraçá-lo do seu aparelho. A turma pôs-se toda a estudar a forma de lho roubar. Não como costumavam fazer, por uns minutinhos, só para vê-lo a atirar as beatas dos cigarros contra o vidro da janela, que pensava estar aberta, mas durante a aula inteira. Como agir, para que ele não entendesse que o acto tinha a ver com a prova escrita? Pregar-lhe uma rasteira à entrada da sala, para que ele caísse e os óculos se partissem? Hum... porque não?! Mas, coitado do homem, podia aleijar-se a sério e a situação complicar-se-ia.

Durante os três dias que precederam o do ponto de português, aquelas cabecinhas trabalharam muito, esforçaram-se mesmo, não para prepararem a matéria, mas para conseguir uma boa nota sem cansar a pinha com coisas fastidiosas.

No dia do ponto, já resignados ao espalhanço que os esperava, lá entraram para a sala, arrastando os pés e encafuando nos bolsos as últimas cábulas com as declinações de latim. Instantes antes do segundo toque, apareceu o Batata, num passo meio titubeante e rosto desnudado! Tinha partido os óculos na véspera e mandara-os para o concerto, explicou ao entrar na sala enquanto caminhava com os olhinhos apertados, para melhor discernir o caminho até à secretária.

Na turma fez-se um silêncio. Ninguém acreditava no que via! Não se costuma dizer  “Põe a mão que Deus te ajuda”? E não é que Deus ajudou mesmo?! Recompensou os árduos dias de labor com aquele presente: o Batata sem o seu instrumento de defesa. O dia estava ganho e o ponto também!

O silêncio foi rapidamente substituído por um burburinho. Num ápice, se trocaram opiniões e tomaram decisões: o Jajão faria o ponto e ditá-lo-ia aos outros. Enquanto isso, Batata distribuía os enunciados pelos alunos, num suposto silêncio que os seus ouvidos garantiam. A enevoada imagem dos alunos sentados e debruçados sobre as suas folhas, era sinónimo de que os discentes estavam concentrados no trabalho. Sentou-se à secretária e lá ficou, tamborilando a mesa, à espera que a hora passasse. De vez em quando, acendia um cigarro, cuja beata, minutos mais tarde, atirava para a janela. Ouvia-se, então, um leve ruído seco do impacto desta contra o vidro. Dessa vez, ninguém galhofava.  A rapaziada continuava serena e compenetrada na... espera do ditado do Jajão. Uns desenhando, outros escrevendo piadas, a fim de que o Batata, não se apercebesse de qualquer imobilismo suspeito na neblina que o rodeava

Passada uma meia hora, ouviu-se uma voz sussurrada, que vinha do fundo da sala:

– Eh pá! Ó Jajão, quando é que acabas essa porcaria, para ditares à malta?

Dezanove cabeças levantaram-se ao mesmo tempo e olharam para o professor. Este estava, imperturbável, a limpar as unhas com a ponta do canivete. Não reagiu. A mesma voz insistiu:

– Bolas, pá! Faltam vinte minutos para tocar!

– Estou quase a acabar! – respondeu Jajão no mesmo tom – Falta-me só o fim da redacção – e uns segundos depois acrescentou: – Já acabei.

Começou a ditar o ponto em surdina, mas de forma perfeitamente audível para todos. Mantinha a cabeça baixa como se estivesse a rever o seu trabalho e, de vez em quando, dava uma olhada no professor para se assegurar que ele não o ouvia. Quando a campaínha tocou, Jajão terminava o seu ditado. Ordeiramente, os alunos começaram a levantar-se e a ir entregar os pontos ao professor, que os acolhia com um sorriso. Estavam todos mortos de riso só de pensarem que mal imaginava ele que partia com vinte provas iguais! A malta esfregava as mãos de contentamento. O Jajão nunca tivera negativa a português, por conseguinte os resultados seriam, pelo menos, razoáveis. Daria certamente para tapar o onzezito que faltava...

A entrega dos pontos foi esperada com ansiedade. A semana foi longa! Finalmente chegou o dia. O Batata, já  com os óculos reavidos, distribuiu os pontos por ordem descendente de classificação, enquanto dizia, satisfeito, a cada aluno a quem entregava a respectiva prova:
– Nada mau! Nada mau!

Os “suficientes” sucediam-se infalivelmente e os últimos a serem chamados já se aproximavam do professor, confiantes na certeza do mesmo resultado.

Por fim o Batata chamou o último aluno. Olhou-o fixamente e falou-lhe num tom muito sério:

– Para a próxima vez, faça o favor de cuidar a apresentação  do seu trabalho. Essa gatafunhada toda não é letra que se apresente! – e entregou-lhe o ponto.

Jajão, pois que do Jajão se tratava, olhou para o canto do cabeçalho da folha de exercícios onde se inscrevia a classificação e leu as gordas letras escritas a vermelho: MEDÍOCRE.

Naturalmente...
   

1 commentaire:

  1. Que história deliciosa e muito bem escrita! Levou-me aos meus tempos do Gil Eanes, em S. Vicente. A irreverência juvenil é transversal a todos os tempos e lugares.

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