Há pessoas que se prestam a serem os
bobos da corte, naturalmente... inocentemente... ou... inconscientemente.
Inconscientemente?
Estávamos no ano lectivo de 1966/1967, um daqueles
anos em que as brincadeiras no Liceu Salvador Correia não tinham ainda o gosto pronunciado pela
irreverência e pela contestação conturbada dos meados da década de setenta.
Imperava uma tradição de “brincadeiras a brincar”, transmitida de geração em
geração, que ao longo dos anos se foi afinando e se tornou numa parte do “património
cultural” daquela Casa. Coisas que nem ao demo lembrariam... O mínimo defeito,
deslize ou desajustamento de um frequentador daquele recinto, dava logo lugar a
uma alcunha que se impunha sorrateira mas definitivamente, passando mesmo a
ofuscar o nome do alcunhado e varrendo-o das memórias, com o passar dos anos.
Professores, alunos e contínuos foram vítimas dessa arte, pois, exigindo
talento, arte não deixava de ser a de alcunhar o próximo. Gerações houve,
indubitavelmente, que nunca souberam os verdadeiros nomes de certos
professores, cujas alcunhas se instalaram uma ou duas décadas antes da sua
passagem pelo Liceu...
Quem não se lembra do “Batata”? E quem se lembra
do seu nome...? De onde lhe viera a alcunha?
O Batata foi, sem dúvida, um dos professores mais
castiços que passou pelo Salvador Correia. Figura típica, saída direitinha de
uma comédia “hollywoodiana”, tinha a má sorte de acumular duas deficiências,
daquelas que os alunos não perdoam: via mal e ouvia pior! A conjunção destas
duas particularidades não se notabilizou unicamente pela sua simultaneidade,
mas sobretudo pela imbricação dos respectivos suportes correctores. É que o
aparelho auditivo do mestre de português estava encaixado nas hastes dos
óculos, onde reluziam fortíssimas lentes de míope. Da figura franzina, apenas
sobressaía esse “aparelho” audiovisual, seu único meio de sobrevivência na
selva salvadoriana, mas simultaneamente, instrumento da sua perdição nas mãos
de imperdoáveis predadores, os seus cândidos alunos.
Foram inúmeras as partidas pregadas ao Batata. Ele
fazia parte dessas pessoas que inocentemente, inconscientemente, passavam por
ser o palhaço de serviço. Mas... fazia mesmo?
O terceiro período daquele ano
lectivo chegava ao fim. Os últimos pontos estavam à porta e representavam a
derradeira chance para muitos dos que nos trimestres anteriores tinham ficado
aquém do dezito. Não abundando o amor aos livros de estudo, a passagem de ano
teria que ser conseguida de outra maneira. Eh! Cada um amanha-se como pode! E o
5°E, onde a maioria dos alunos fazia já parte do mobiliário do Liceu, deitando
as contas à vida, resolveu salvar o ano
com a “ajuda” do Batata. Bastava cortá-lo do mundo e a situação estaria
controlada. Claro está que, para isolá-lo, era só necessário desembaraçá-lo do
seu aparelho. A turma pôs-se toda a estudar a forma de lho roubar. Não como
costumavam fazer, por uns minutinhos, só para vê-lo a atirar as beatas dos
cigarros contra o vidro da janela, que pensava estar aberta, mas durante a aula
inteira. Como agir, para que ele não entendesse que o acto tinha a ver com a
prova escrita? Pregar-lhe uma rasteira à entrada da sala, para que ele caísse e
os óculos se partissem? Hum... porque não?! Mas, coitado do homem, podia
aleijar-se a sério e a situação complicar-se-ia.
Durante os
três dias que precederam o do ponto de português, aquelas cabecinhas
trabalharam muito, esforçaram-se mesmo, não para prepararem a matéria, mas para
conseguir uma boa nota sem cansar a pinha com coisas fastidiosas.
No dia do
ponto, já resignados ao espalhanço que os esperava, lá entraram para a sala,
arrastando os pés e encafuando nos bolsos as últimas cábulas com as declinações
de latim. Instantes antes do segundo toque, apareceu o Batata, num passo meio
titubeante e rosto desnudado! Tinha partido os óculos na véspera e mandara-os
para o concerto, explicou ao entrar na sala enquanto caminhava com os olhinhos
apertados, para melhor discernir o caminho até à secretária.
Na turma
fez-se um silêncio. Ninguém acreditava no que via! Não se costuma dizer “Põe a mão que Deus te ajuda”? E não é que
Deus ajudou mesmo?! Recompensou os árduos dias de labor com aquele presente: o
Batata sem o seu instrumento de defesa. O dia estava ganho e o ponto também!
O silêncio
foi rapidamente substituído por um burburinho. Num ápice, se trocaram opiniões
e tomaram decisões: o Jajão faria o ponto e ditá-lo-ia aos outros. Enquanto
isso, Batata distribuía os enunciados pelos alunos, num suposto silêncio que os
seus ouvidos garantiam. A enevoada imagem dos alunos sentados e debruçados
sobre as suas folhas, era sinónimo de que os discentes estavam concentrados no
trabalho. Sentou-se à secretária e lá ficou, tamborilando a mesa, à espera que
a hora passasse. De vez em quando, acendia um cigarro, cuja beata, minutos mais
tarde, atirava para a janela. Ouvia-se, então, um leve ruído seco do impacto
desta contra o vidro. Dessa vez, ninguém galhofava. A rapaziada continuava serena e compenetrada
na... espera do ditado do Jajão. Uns desenhando, outros escrevendo piadas, a
fim de que o Batata, não se apercebesse de qualquer imobilismo suspeito na
neblina que o rodeava
Passada
uma meia hora, ouviu-se uma voz sussurrada, que vinha do fundo da sala:
– Eh pá! Ó Jajão, quando é que acabas essa porcaria, para ditares à
malta?
Dezanove
cabeças levantaram-se ao mesmo tempo e olharam para o professor. Este estava,
imperturbável, a limpar as unhas com a ponta do canivete. Não reagiu. A mesma
voz insistiu:
– Bolas, pá! Faltam vinte minutos para tocar!
– Estou quase a acabar! – respondeu Jajão no mesmo tom – Falta-me só o
fim da redacção –
e uns segundos depois acrescentou: – Já acabei.
Começou a
ditar o ponto em surdina, mas de forma perfeitamente audível para todos.
Mantinha a cabeça baixa como se estivesse a rever o seu trabalho e, de vez em
quando, dava uma olhada no professor para se assegurar que ele não o ouvia.
Quando a campaínha tocou, Jajão terminava o seu ditado. Ordeiramente, os alunos
começaram a levantar-se e a ir entregar os pontos ao professor, que os acolhia
com um sorriso. Estavam todos mortos de riso só de pensarem que mal imaginava
ele que partia com vinte provas iguais! A malta esfregava as mãos de
contentamento. O Jajão nunca tivera negativa a português, por conseguinte os
resultados seriam, pelo menos, razoáveis. Daria certamente para tapar o
onzezito que faltava...
A entrega
dos pontos foi esperada com ansiedade. A semana foi longa! Finalmente chegou o
dia. O Batata, já com os óculos
reavidos, distribuiu os pontos por ordem descendente de classificação, enquanto
dizia, satisfeito, a cada aluno a quem entregava a respectiva prova:
– Nada mau! Nada mau!
Os
“suficientes” sucediam-se infalivelmente e os últimos a serem chamados já se
aproximavam do professor, confiantes na certeza do mesmo resultado.
Por fim o Batata
chamou o último aluno. Olhou-o fixamente e falou-lhe num tom muito sério:
– Para a próxima vez, faça o favor de cuidar a apresentação do seu trabalho. Essa gatafunhada
toda não é letra que se apresente! – e entregou-lhe o ponto.
Jajão,
pois que do Jajão se tratava, olhou para o canto do cabeçalho da folha de
exercícios onde se inscrevia a classificação e leu as gordas letras escritas a
vermelho: MEDÍOCRE.
Naturalmente...
Que história deliciosa e muito bem escrita! Levou-me aos meus tempos do Gil Eanes, em S. Vicente. A irreverência juvenil é transversal a todos os tempos e lugares.
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