Fonte: teemix.aufeminin.com |
Ainda o sol não tinha despontado, quando Tia Maninha, com uns sessenta e
tantos anos bem contados na pontada, subia, com a ligeireza dos seus tempos
de badjudessa, a avenida que ela teimosamente continuava a chamar
Avenida da República. É que essa história da troca dos nomes das ruas depois da
Independência só servia para lhe baralhar a cabeça. Coisa muito complicada
mesmo, que não dava para entender! Então, se a vila de Teixeira Pinto se passou
a chamar Cantchungo, porque razão o chofer do táxi se riu dela, no outro dia,
quando lhe pediu que a levasse até à estátua de Cantchungo, ali na Mãe d’Água?
Como de costume, Tia Maninha tinha combinado com as suas mandjuas encontrarem-se em casa de Nha
Arminda, para juntas seguirem para o choro
de Nhu Djon, falecido na véspera. “Coitado de Nhu Djon! Chegou mesmo a sua
hora. De nada lhe valeram as idas à baloba nem os mècinhos do mouro.
Paz à sua alma. Amém! ” dizia para consigo tia Maninha enquanto acelerava o
passo e avançava no sereno da manhã.
Mais um bocadinho e chegaria à casa de Nha Arminda, que ficava mesmo ali atrás
dos Bombeiros.
Todas as manhãs era esse o seu primeiro trajecto, quando da sua Mansoa
natal vinha passar umas semanas a Bissau. Depois seguia com a manjuandade toda animar os choros e polir as calçadas da capital,
não fossem as circunstâncias, dir-se-ia até alegremente... Por vezes iam a três
num mesmo dia, porque acompanhar os mortos é coisa sagrada e, um dia, quando
ela morresse, também gostaria que lhe fizessem companhia...
Naquela manhã, a nobre missão de velar o morto tomava ares de cerimónia
oficial, porque Nhu Djon, antigo varredor da Câmara antes da Independência, era
pai de dois combatentes da liberdade da Pátria, sendo um deles um Membro actualmente. Certamente que a
nomenclatura viria falar mantenhas de
choro e as coisas teriam que ser feitas a preceito. Haveria que ajudar as
parentes do falecido a preparar o cuscus,
que seria servido com o café, logo cedinho. Depois viria a cena à volta do
morto, durante a qual cada uma, entre gritos e lamúrias, despejava um rosário
de elogios ao defunto que, só pelo facto de ter morrido, passara a ser a melhor
pessoa do mundo. Havia também as mensagens a dar, que o defunto deveria levar
aos falecidos, quase sempre as mesmas
transmitidas a cada morto que velassem.
- Nhu Djon, diga à minha vizinha Maria Té que não se preocupe com o marido.
Na vizinhança, olhamos todos por ele. Que ela peça só a Deus que lhe dê forças
e saúde-recomendou Tia Maninha, enquanto enxugava os olhos com as costas da mão.
Tudo isso ela fez com a devida solenidade, não por ser um caso especial,
mas por ser esse o seu carácter: o dever deve ser cumprido e bem cumprido.
Tinha ganho o seu dia e mais uma graça de Deus de que Ele não se esqueceria
quando chegasse a sua hora de entregar a alma ao Redentor.
Com a sensação do dever cumprido, despediu-se e pôs-se a caminho da
casa do sobrinho, onde habitualmente
ficava alojada quando vinha a Bissau. Naquele dia, como saíra ainda de
madrugada, não vira ninguém e nem pôde avisar que não esperassem por ela para o
almoço.
O sol começava a declinar e dentro de alguns minutos cairia a noite. Tia
Maninha ia atravessar a rua diante da Segunda Esquadra, quando viu no passeio
do outro lado uma multidão de gente à porta de uma casa.
“O que terá acontecido?”, perguntou-lhe a sua curiosidade.
Para lá se dirigiu e entrou no quintal da casa. Foi até à varanda e viu
umas quantas pessoas vestidas de preto e sentadas nas cadeiras colocadas ao
longo das paredes. “Um choro!”,
concluiu rapidamente Tia Maninha e logo tomou os ares próprios à circunstância
: rosto fechado, patenteando uma pena visível.
- Não posso deixar de ir falar mantenha àquela gente – disse para com os
seus botões – só mesmo entrar e sair...
Avançou-se para o grupo de mulheres
grandes que estava na sala ao lado da varanda. Muito dignamente,
apresentou-lhes os seus mais sentidos pêsames e desejos que Deus recolhesse
aquela santa alma na Sua Graça Divina. “Amém!”, responderam as mulheres em
uníssono, num lamuriante sussurro. Depois, ao mesmo tempo que se benzia
aproximou-se do caixão colocado no meio da sala. Parou junto aos pés do defunto
e ergueu as mãos para começar a sua conversa com o falecido. Nisto, engasgou-se
com a emoção e foi assaltada por um ataque de tosse que lhe arrancou a
dentadura postiça da boca, atirando-a para dentro do caixão. Tia Maninha,
confusa com o que lhe acontecia, apanhou precipitadamente a sua dentadura e,
metendo-a no bolso do vestido, saiu apressadamente do velório, em direcção a
casa, sem sequer se despedir. “Credo! Cruzes! Quem é que me quer impedir de
falar? Passa de largo!”, disse para consigo enquanto se persignava repetidas
vezes.
Chegou à casa do sobrinho ainda muito agitada com a cena que acabara de
viver. Deixou-se cair numa cadeira e, enquanto enxugava com o lenço o calor
que lhe escorria pelo rosto, contou à família a mofineza por que
passara. Ninguém se atreveu a rir ao imaginar Tia Maninha naquela cena, pois a
consternação dela era realmente profunda. O sobrinho, querendo mostrar que
compartilhava a sua pena, perguntou-lhe curioso:
- Mas tia, quem é que morreu?
Tia Maninha arregalou os olhos e com o ar mais contrariado deste mundo
respondeu:
- Como é que eu sei, meu filho?! Nem sequer tive tempo de saber!
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