Carta aberta
Meu amigo,
Já
não sei como perdi o contacto contigo. Provavelmente por culpa minha. Não por
negligência, nem por vontade, mas pelos imponderáveis da vida. Partiste
primeiro, deixando-me saudades, que nem mesmo as longas cartas que, semanal e
religiosamente me escrevias, podiam atenuar. Tinhas tanto para me dizer que
enchias dez folhas e eu respondia-te numa página, por não conseguir contar-te o
que via à minha volta. As nossas últimas cartas devem-se ter cruzado algures
sobre o oceano, sem nunca terem chegado ao destino. Não voltei a ter noticias
tuas e certamente não terás também entendido a ausência das minhas. E o passar
dos tempos, trouxe-nos a ambos, a resignação ao silêncio mútuo.
Não
nos voltámos a ver, mas recordo-te como se tivesse sido ontem que nos
separámos. Tenho saudades dos tempos de liceu, da nossa amizade, da nossa
cumplicidade...
Nunca
cheguei a saber a verdadeira natureza dos teus sentimentos por mim, mas a
imensa ternura no teu trato tornou bem fraterna a amizade que me ligava a ti.
Houve quem suspeitasse de uma relação mais íntima que a simples amizade que nos
unia e lembro-me o quanto isso te embaraçava, ao ponto de, durante algum tempo,
deixares de vir cedo para o liceu, para esperares comigo pela abertura dos
portões. Timidez ou... estaria alguém invadindo o teu jardim secreto e
descobrindo o que querias ocultar? Inicialmente pensei na primeira hipótese,
mas logo comecei a duvidar, quando descobri os meus dois fios de cabelo, um
preto e outro branco (eh! nessa altura já os tinha!...), no teu livro de
História. E como interpretar o apertar cerrado das minhas mãos pelas tuas,
quando conversávamos à janela da sala de aulas ou debruçados na varanda sob as
arcadas? Ou, ainda, o nome pelo qual só tu, tão ternamente me chamavas? E o teu
meigo olhar de um verde cristalino? Amizade fraterna ou amorosa? Nunca soube!
Talvez nunca tivesse tido a coragem de querer saber... por me sentir incapaz de
corresponder aos teus sentimentos, se eles tivessem ido mais longe do que uma
simples amizade...
Indubitavelmente, eu estava noutra...
O meu coração batia, platonicamente, por uns olhos negros que nunca me olharam
com a doçura dos teus, mas que me amarraram a um sentimento que jamais tinha tido
ou voltei a ter por alguém. O sentimento cego da primeira paixão, que, por
egoísmo de não ser consumada, não dá lugar a outro... Pergunto-me se alguma vez
suspeitaste da sua existência. Nunca falei dele a ninguém por ser esse o meu
jardim secreto...
Até que te foste, recusando a guerra
que se avizinhava, enquanto eu pensava que era aquele o meu país de onde nunca sairia. Partir para onde?... Sonhos que
depressa se desmoronaram... porque, finalmente também chegou a minha hora da
partida, a hora di bai na língua das
minhas raízes... E com ela se instalou a Ruptura... e viagens sem fim,
dominadas pela sensação de estar em permanente passagem, que nem mesmo os
alicerces criados na Pátria de adopção conseguiram amenizar. Desde então, a
minha vida tem sido feita de chegadas e partidas, deixando pelo caminho amigos,
lugares amados, trazendo comigo apenas as recordações, boas e más, que ao longo
dos anos foram tornando cada vez mais pesada a minha bagagem.
Os anos correram e pergunto-me
incessantemente por onde andarás. Como gostaria agora de poder escrever-te uma
carta, desta vez bem mais longa que todas as que me escreveste reunidas! Como
me faria bem poder contar-te o que foram estes anos de percursos cruzados que
me transpuseram além fronteiras, num mundo onde a riqueza se encontra nos
corações dos homens, por ser a que resulta da convivência entre diferentes
culturas e sensibilidades! Nesse mundo em que o Homem, enquanto Ser Universal,
convive com uma dicotomia antagónica: a força e a fragilidade de quem abraçou
vários horizontes. A força, pelo acumular de vivências cruzadas que lhe
permitem saber estar com os outros e a fragilidade, pelo gosto amargo que fica
da sensação de não pertencer a lugar nenhum, por serem tantos os horizontes de
referência... Num mundo em que cada um de nós, Filhos do Império, se reencontra na sua dimensão universal e
redescobre, finalmente, a serenidade perdida no momento da ruptura...
Para te falar de tudo isso e do quanto
lamento o nosso desencontro, eu queria escrever-te uma carta, como dizia o
poeta...
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