samedi 8 mars 2014

CONFIDÊNCIAS COM O MAR






A tarde estava calma e cálida. Maria Rita acelerou o passo em direção à praia, para cumprir aquilo que se tornara num ritual desde que viera “retornada” do “Sul”, da sua Angola natal. Ao deixar para trás a vila, procurou com o olhar a “sua” rocha, um pedregulho que, entre muitos outros, desponta da areia branca e perto do qual vêm desmaiar as ondas do mar. Ora mansas ora furiosas, tal como ela face ao destino que a vida lhe reservara. Ali estava a rocha, majestosa e livre. Teve sempre a sorte de nunca a encontrar ocupada, como se àquela hora o lugar lhe estivesse reservado...
Trepou para a pedra e instalou-se.  A praia estava deserta. Ao longe dois pescadores puxavam para fora do mar um pequeno bote. Maria Rita sorriu. Faziam-na lembrar-se do velho pescador que muitas vezes encontrara na praia diante da Igreja do Cabo, na ilha de Luanda, fumando o cigarro ao contrário, isto é, com a ponta acesa dentro da boca! “Ele não se queima?”, perguntava maravilhada à mãe todas as vezes que o encontrassem. Esse episódio fazia agora parte de um passado que para ela deixara de ter futuro por ter acabado naquele dia em que, precipitadamente, embarcara na ponte aérea para fugir à ameaça da guerra.
Olhou para a linha do horizonte e estendeu o braço como se quisesse alcançá-la.  Talvez agarrando-a, apanharia esse passado que ficara para lá do oceano, repleto das brincadeiras no bairro da sua infância e dos primeiros sonhos das fantasias da adolescência. Para lá do oceano deixara um pedaço de vida que teimosamente se negava a colar-se ao que veio depois.
Fora difícil aquela partida, uma ruptura que ela recusava-se a aceitar por não ter sido escolha sua. E desde então vivia em permanente revolta. Consigo e com todos! Apenas com o mar se acalmava e quanto mais bravo ele estivesse mais serena se sentia, como se ele a domesticasse. E era por isso que ali vinha todas as tardes, para conversar com ele e ouvir os seus conselhos. O mar que se tornara no seu confidente, o único amigo que a entendia. E naquela tarde precisava muito de falar com ele, porque necessitava da sua ajuda. Talvez ele pudesse levá-la de volta, para trás da linha do horizonte...
– Ó, Mar, meu amigo, porque não me levas de volta à terra onde nasci? Deixa-me embarcar nas tuas ondas... Por favor, meu amigo! – disse-lhe em pleno desespero.
– De que queres tu fugir, Maria Rita? – perguntou-lhe o mar com uma voz rouca.
– Deste lugar!
– Mas este lugar é teu!
– Meu? Não sou de cá!
– Mas é a terra dos teus pais e, por conseguinte, a tua também...
– Minha? Como, se não a conheço?
– Como não a conheces? Os teus pais nunca te falaram dela?
– Sim..., mas eu nunca estive cá. Não conheço ninguém... Os meus amigos ficaram lá. A minha vida ficou lá! Nada aqui me faz lembrar do meu passado!
– O teu passado! Falas como se a tua memória te impedisse de te lembrares dele e que precisasses de algo que te faça recordar! Se lhe tens tanto apego, porque necessitas que te refresquem a memória? – indagou o mar irónico.
Maria Rita ficou em silêncio durante uns instantes, com o olhar perdido na onda que se aproximava da rocha e que ao bater nesta respingou molhando-lhe o rosto.
– Eh! Ó Mar! Porquê tanta fúria? Estás zangado comigo?
– Zangado eu? Porquê? Tu é que estás zangada contigo! Não sei se já te tinhas apercebido disso...
– Como posso estar zangada comigo mesma? E por que razão?
– Isso queria eu saber...
A jovem mergulhou num novo silêncio. Essa agora de estar zangada consigo mesma! O mar saía com cada uma! Como podia alguém estar zangado consigo mesmo?
– Não me respondes? – insistiu o oceano.
– Que queres que te responda, se nem sequer compreendo a tua pergunta... O que queres dizer com isso de eu estar zangada comigo mesma?
– Não querendo aceitar a tua nova vida, pões o teu presente em conflito com o teu passado. Divides a tua vida em duas vidas, totalmente distintas e sem qualquer ligação entre elas. Esqueces-te de que tu és a portadora de ambas e que elas vivem em ti. Não é por teres partido de um lugar que o teu passado se perdeu. A menos que te tenhas tornado amnésica... – Acrescentou num tom de troça antes de continuar:
– Sabes, Maria Rita, contrariamente ao que possas pensar, és uma pessoa com muita sorte!
– Com muita sorte? Que disparate! Hoje só dizes tolices! Como posso eu ter muita sorte se me sinto a mais infeliz das criaturas? – perguntou com um fiozinho de voz que traía a emoção que lhe vinha da alma.
– Muita sorte tens tu, sim! Já imaginaste a riqueza que transportas em ti?
– Riqueza? Viemos com uma mão à frente e outra atrás e ainda tens a lata de me falar em riqueza?!
– Riqueza sim, minha filha, e daquela que nunca se perde por ser interior. Vens de outros horizontes, de outras culturas e de outras vivências que de certa forma assimilaste. Isso jamais sairá de ti. Tens também a vantagem de pertencer geneticamente a um povo que mesmo em terras distantes preserva ao longo das gerações os valores fundamentais da sua cultura...
– Não é por ter comido catchupa e ouvido mornas e coladeras que assimilei a cultura caboverdiana... – interrompeu-o com uma certa irritação e na defensiva.
– Aí é que te enganas, Maria Rita, essa catchupa e essas mornas e coladeras eram apenas a parte visível do iceberg! A educação que recebeste dos teus pais não era angolana! Era caboverdiana! A mesma que eles tinham recebido antes de partirem daqui. Não quero, porém, dizer que tenhas que te sentir unicamente caboverdiana, uma vez que viveste também uma outra realidade e que te tenhas identificado com Angola. E a propósito, se entendes que a catchupa não pôde fazer de ti uma caboverdiana, achas que o funge fez de ti uma angolana? – E o mar riu-se às gargalhadas.
Maria Rita amuou e preferiu não responder. Voltou a fixar o horizonte de testa franzida enquanto refletia no que o mar acabara de lhe dizer. Ele tinha uma certa lógica... que ela não conseguia seguir. Esfregou o nariz como sempre fazia quando tinha uma dúvida e não sabia o que decidir. “O que queria ele dizer com isso tudo?” – murmurou entre dentes.
– O que quero com isso dizer, minha amiga? – reagiu o mar atento. – Simplesmente que tu não precisas de negar a tua caboverdianidade para guardares a tua angolanidade! E é essa a tua riqueza que jamais alguém poderá roubar-te. A tua vida de hoje é um prolongamento da anterior. Não é uma outra vida, mas sim a mesma que continua num novo país que deves aprender também a amar.
– E a minha pátria? Qual dos países será a minha pátria? – perguntou arrebatadamente.
– Isso é importante para ti?
– É sim e muito! Toda a gente tem o direito de ter uma pátria, não? – Uma certa irritação denotava o estado da sua alma.
– Então, mais feliz ainda serás quando descobrires que tens uma super pátria!
– Uma super pátria? O que é isso? Acho que estás a ficar louco de tanto beberes todo esse petróleo que vazam em ti...
Pela primeira vez Maria Rita esboçou um sorriso desde o início da conversa dessa tarde. Fora uma ocasião para provocar o mar sempre tão seguro de si. Mas o oceano fingiu não perceber a piada para não desviar a conversa para um outro debate e prosseguiu:
– É como te digo! Uma super Pátria, uma terra de sonho, situada algures num mundo imaginário e desprovido de uma dimensão terrestre. As suas fronteiras abraçam, ao mesmo tempo, a época da tua infância e adolescência e a tua vivência atual, tudo numa perfeita harmonia, sem discriminações, sem exclusões, por ser o país criado para ti. Só para ti.
– Estás completamente louco! Uma pátria imaginária? Onde já se viu isso?
– Ela será imaginária enquanto não a aceitares... pois ela existe em ti. É uma verdade que não deves ignorar se realmente quiseres ter serenidade na tua vida. O nosso passado só nos serve quando nos pode ser útil para o presente e o futuro. Se o fecharmos num compartimento, mesmo que seja forrado de ouro e diamantes, não nos serve para nada. Deixa-o entrar no teu presente para que construas um futuro sereno e harmonioso...
Maria Rita já não escutava o mar que continuava a falar-lhe. A voz dele parecia cada vez mais distante. Ela concentrava toda a atenção no que o mar lhe dissera, nessa pátria imaginária que vivia nela. E se o mar tivesse razão? E se fosse ela que complicava tudo? Sim, ele tinha razão! Nessa pátria imaginária ela encontraria a sua Angola natal e o Cabo Verde dos pais, que de repente lhe pareceu menos estranho e mais próximo, porque deixava o seu coração aproximar-se dele, de mansinho, mas seguramente. Repentinamente sentiu-se invadir por uma alegria jamais sentida. O mar tinha razão! Essa pátria existia e ela acabava de descobri-la. Tinha que dizer isso ao mar e agradecer-lhe a forma como lhe devolveu o passado que ficara para lá do horizonte... Pôs-se de pé sobre a rocha e, colocando as duas mãos à volta da boca em guisa de um altofalante, gritou:
– Obrigada, ó mar, por me fazeres compreender o que eu negava ver e aceitar!
O mar não respondeu. Uma onda que viera bater na rocha recuava tranquilamente para o largo. Maria Rita insistiu:
– Estás a ouvir-me, ó mar? Escuta meu amigo!
O oceano continuou mudo. Aos poucos ela apercebeu-se de um barulho vindo das rochas. Voltou-se para trás e viu a mãe que tentava equilibrar-se sobre as pedras à medida que avançava para ela.
– O que fazes aqui, Maria Rita? Procurei-te por toda a parte! Com quem estavas a falar? Não vejo ninguém por aqui... Estás bem, minha filha?
– Oh, mamã, nunca estive tão bem na minha vida! Dá cá a tua mão e vamos-nos daqui. Apetece-me ir ouvir uma morna... e queria que a escutasses comigo!
– Uma morna..., mas que morna, minha filha?
– Mar de Canal...
Maria Rita pegou a mãe pela mão e desceram para a areia. Virou-se uma última vez para o mar e piscou-lhe um olho num gesto cúmplice.




Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire