Testemunho
Foi em 1975, já com os meus
dezanove anos completados, que me confrontei pela primeira vez com a questão
identitária e nessa altura estava longe de imaginar o quão complexo pode ser o
forjar de uma identidade quando se nasce e se vive além-fronteiras da terra mãe
dos seus genitores.
De Cabo Verde trago as raízes,
de Angola o berço e da Guiné-Bissau a escola da vida, países que têm como
denominador comum o facto de terem pertencido ao “Império Português”, facto
esse que não é alheio à forma inclusiva como se forjou a identidade que defino
como sendo a minha hoje.
Nasci em Luanda,
onde vivi até aos 19 anos. Pertenço, pois, a uma “segunda geração” de
cabo-verdianos que foram para aquela então província portuguesa em busca de
novos horizontes, levando consigo uma herança cultural que tão bem souberam
transmitir aos seus descendentes.
Em casa, dominava a presença
cabo-verdiana: o crioulo, os costumes, a música, a culinária, os amigos e, sobretudo, as histórias contadas pela
minha avó materna do seu Cabo Verde da primeira metade do século XX.
Esse Cabo Verde que se tornou também um pouco meu, preenchendo o meu
imaginário com as histórias do Lobo e do Chibinho, das damas com pé de cabra ou
simplesmente com as histórias do Dr. Paradinha, professor e chefe da minha avó
no hospital da Praia...
Na escola impunha-se a presença
portuguesa, sentida no entanto de uma forma meio ambígua: a cultura e a língua
portuguesas, certo, a história de Portugal também, mas tudo isso acompanhado de
um sentimento de rivalidade em relação à metrópole. Talvez por os
colegas metropolitanos, desembarcados de fresco, considerarem os naturais
de Angola como cidadãos de segunda. E essa rivalidade fez desenvolver um
“sentir angolano” bem característico da juventude da minha geração não
originária de Angola, sentir esse que se alimentava na cultura de raiz angolana
de que a música se revelou como sendo um instrumento privilegiado de
divulgação.
Nesta encruzilhada de
referências, com um pano de fundo de uma guerra nas colónias portuguesas com
vista à libertação dos respetivos povos do jugo colonial, eu
sentia-me “angolana,
filha de Cabo-verdianos” e essa ordem não era arbitrária... Cabo Verde era uma espécie de
retaguarda, de referência inegável sem dúvida, mas era a terra dos meus pais, pois a minha era Angola...
A guerra civil que ali eclodiu em 1975,
nas vésperas da Independência, levou a que partíssemos do país que me viu
nascer.
Foi então a rutura causada por
essa indesejada,
inesperada e precipitada partida que me pôs, pela primeira vez, perante uma grande questão
existencial: “O
que sou
realmente?”. Pergunta à
qual, ainda hoje, volvidos 37 anos, sou incapaz de responder com uma única palavra...
Na
verdade consegui ultrapassar essa primeira rutura agarrando-me àquilo que o meu
país de adoção, a Guiné-Bissau para onde fui viver, me oferecia: participar na
realização dos seus sonhos de jovem nação. E nessa batalha da reconstrução
nacional da pós-independência imediata, com a Unidade Guiné-Cabo Verde como
pano de fundo, se forjou em mim um "sentir guineense", (que hoje
defino antes como a faceta guineense da minha identidade), que veio de certa
forma preencher a “orfandade” deixada em mim pela ablactação inesperada da
minha terra natal. Essa identidade de substituição, ou que foi por mim vivida
como tal, mesmo que de forma inconsciente, tornou-se quase exclusiva.
Identificar-me, na altura, unicamente como guineense bastava-me e no entanto
não tinha renegado as minhas origens nem o meu passado no país da Welvitcha
Mirabilis.
Porém
o processo histórico da Guiné-Bissau enveredou por percursos que a distanciaram
dos sonhos e valores que tinham tecido essa minha “identidade”, fragilizando
assim o sustentáculo desta. O golpe de estado de 1980, que pôs termo a toda
veleidade de uma unidade entre a Guiné e Cabo Verde, e a guerra civil de
1998/1999 foram golpes fatais que fizeram ruir os alicerces dessa identidade. A
nível mais pessoal cito a maneira como o Ministério dos Negócios Estrangeiros
me afastou da Função Pública em 1996, sendo eu na altura conselheira para os
assuntos económicos na embaixada em Bruxelas. Nenhuma explicação me foi dada de
forma oficial ou até mesmo oficiosa e isso apesar das inúmeras cartas que
enviei ao ministro de então, bem como aos seus sucessores, com cópias para a
Primatura, Presidência da República e Ministério da Função Pública, pedindo uma
explicação desse meu afastamento e um procedimento administrativo como previsto
na lei da Função Pública. Por que razão terei sido afastada se nenhum processo
disciplinar me foi feito por erro profissional? Porém tenho a consciência
tranquila de ter exercido com afinco, brio e lealdade os cargos que ocupei na Função
Pública guineense.
A
conjugação destes factos, que muito me abalaram, colocou-me perante uma nova
rutura. Desta vez, a rutura não era unicamente entre mim e o “meu país”, mas
também algo de bem mais profundo. Era uma rutura dentro de mim mesma, entre
aquilo em que eu pensava me ter tornado e o que inconscientemente eu era na
realidade. Em duas palavras entrei numa “crise de identidade”!
Foi
então que decidi fazer uma pausa para proceder ao balanço da minha existência:
compreender de onde vinha e em que me tinha tornado ao longo da minha vida.
Dessa pausa nasceu um romance cuja protagonista tem um percurso onde integração
e exclusão se confrontam, num braço de ferro entre imposição e preservação de
culturas, e em que o apaziguamento só pode ser alcançado pela busca da própria
identidade numa dinâmica universal. Sem ser uma autobiografia, este exercício
literário permitiu-me exorcizar as minhas deceções, angústias e ressentimentos
ao mesmo tempo que me levou a uma redefinição da natureza da minha própria
identidade.
Na verdade, pelas minhas origens
cabo-verdianas, o meu nascimento, infância e juventude na Angola colonial, por
conseguinte marcada também pela presença portuguesa, bem como pela minha
vivência guineense desde 1975, liguei-me com laços tão profundos a esses países
que seria redutor enclausurar em fronteiras geográficas uma identidade cujos
alicerces afinal ultrapassam a contribuição própria de cada país. E a estas
influências devo acrescentar o contributo de outros dois países onde vivi largos
anos, embora de um outro modo: a França e a Bélgica.
Partindo do princípio de que a identidade
cultural é determinada pelo conjunto de valores através dos quais se
manifestam as relações entre indivíduos de um mesmo grupo que partilham
patrimónios comuns, como a cultura,
a língua, a religião, os costumes, entre outros, ela não é um processo estático, evoluindo
à medida que a sociedade avança do ponto de vista cultural, social, económico e
político. Do mesmo modo, a integração de um indivíduo no seio de uma nova
sociedade vai de uma forma ou de outra influenciar a sua própria identidade por
pô-lo em contacto com novos valores culturais, sociais e políticos.
Desta feita, o fenómeno da emigração desempenha um papel fundamental na
miscigenação cultural, a nível de cada indivíduo emigrado, mas também com um
efeito sobre as comunidades de origem, graças ao permanente intercâmbio entre o
emigrante e estas. Se as primeiras gerações podem continuar a sentir-se ou a
definir-se exclusivamente como cidadãs dos países de origem, com uma ligação
quase “visceral” à mãe
pátria, a questão já não se põe de forma tão linear no caso das segundas
gerações, estas já nascidas no país de acolhimento. Com efeito e apesar da
forte presença da cultura de origem no seio familiar, o filho do emigrante vai,
particularmente através da instituição escolar, conviver com outras culturas,
outros hábitos que acaba também por assimilar. Duas situações podem daí advir.
A mais corrente parece ser a da convivência sem conflitos dessas duas culturas,
em que o indivíduo, não excluindo o facto de pertencer ao país dos seus
progenitores, reivindica também a sua pertença ao país onde nasceu. A segunda e
a mais rara é a da adoção exclusiva da cultura do país onde nasceu, rejeitando
completamente a cultura de origem, comportamento geralmente determinado por um
complexo de inferioridade da cultura de origem em relação à do país de
acolhimento.
Pertencer a duas (ou mais) culturas é sem dúvida uma riqueza pessoal, mas
por essa razão não deixa de constituir uma fonte de um certo “desconforto”. Em primeiro lugar pelo facto de que
entre o “sentir” e o “ser” existe um elevado grau de subjetividade. O
indivíduo que se identifique com determinada comunidade que adotou, não é
necessariamente visto pelos elementos da referida sociedade como sendo um dos
seus. O mesmo é plausível com a própria comunidade de origem que o pode
catalogar de “estrangeirado”, o que não deixa de provocar nele um certo
constrangimento e sentimento de discriminação. Em ambos os casos, essas
atitudes podem ter implicações na integração do indivíduo. Por outro lado, uma
múltipla pertença pode criar a frustração de não se pertencer verdadeiramente a
nenhuma das culturas: à de origem por não se ter uma vivência in loco da
mesma e à do país de adoção, por não ter sido uma cultura de “berço”. Esta
situação faz com que o indivíduo viva com uma dicotomia antagónica: a força e a
fragilidade de quem abraçou vários horizontes. A força, pelo acumular de
vivências cruzadas que lhe permitem saber estar com outros e a fragilidade,
pelo gosto amargo que fica da sensação de finalmente não pertencer a lugar
nenhum, por serem diversos os horizontes de referência.
No meu caso pessoal, ainda bem mais complicado pela mobilidade que tem
caracterizado a minha vida, marcada por muitas horas di bai. A sensação que tive durante muito tempo era a de estar em permanente
passagem, sensação essa que muito contribuiu para a “crise de identidade” que
conheci em 1998. Na verdade, a minha “ancoragem” na Guiné-Bissau foi de tal
forma exclusiva que, ao se desmoronarem os valores que me fizeram identificar
com esse país, senti um enorme vazio. Porém isso não deixou de ser positivo, na
medida em que me obrigou a tomar consciência de que eu tinha outras referências
culturais e identitárias, determinadas pelas minhas origens e pela vivência
anterior à guineense. E foi nessa base que me “reconstituí”, indo buscar às
minhas origens cabo-verdianas os alicerces de uma identidade multifacetada para
a qual contribuíram todas as minhas experiências de vida em cada um dos países
onde vivi. Hoje, coabitam em mim a cabo-verdiana, a angolana e a guineense, num
perfeito equilíbrio e complementaridade. Sou capaz de me sentir cada uma delas
separadamente, isto é, sentir-me cabo-verdiana no meio cabo-verdiano, angolana
com os angolanos e guineense com a comunidade guineense e no entanto ser capaz
de me sentir como o vértice convergente das três. E é aqui que o que
anteriormente defini como o denominador comum aos “meus” países (isto é o elo
que Portugal acabou por ser entre as suas colónias) constituiu um fator de
integração dessas três facetas identitárias pelas influências que teve nas
culturas desses países e por conseguinte na minha identidade.
Graças a essa demanda identitária numa dinâmica transnacional, recusando-me
a fechar-me dentro de fronteiras incapazes de abrangerem o “sentir” que é o
meu, pude finalmente reencontrar a serenidade perdida no momento da
rutura.
Hoje a minha Pátria não se define como um espaço geográfico, mas sim como um
espaço de encontro de vivências e culturas que não conhece a barreira das
fronteiras e onde o “sentir” conta mais do que o “ser”...
Filomena Vieira