samedi 17 mai 2014

VIANA, TAL COMO A SENTI...



Menina do rio
Do monte
E do mar
De beleza serena
Contrastes e cores
Em seu coração palpitam a história
E as memórias que do tempo guardou
Traz no corpo um acorde perfeito
Do passado e presente que casou
Deu filhos ao mar e caminhos ao mundo
Lançou com arrojo um desafio ao futuro
Menina do povo
Nobre se tornou
Seu nome primeiro...
Viana da Foz do Lima
Mas quando a nobreza chegou
A “vila notável”
Viana do Castelo se chamou...


VIANA, TAL COMO A SENTI...

Foi em 2005 que fui pela primeira vez a Viana do Castelo. Uma estada curta de pouco mais de uma trintena de horas para participar, a convite da Câmara Municipal e do  Centro Cultural do Alto Minho, nas edições desse ano da Feira do Livro e da Lusofonia. Razões profissionais não me deixaram ficar mais tempo nessa bela cidade para melhor conhecê-la. Mas foi o suficiente para que me apercebesse de que estava perante uma cidade que fez História e que corajosamente desafiava o futuro.

Confesso que Viana me surprendeu pela positiva! A Viana que descobri estava longe da que registara a minha memória de menina, marcada por aquilo que me ficou das lições de história e geografia de “Portugal Continental”, nos já longínquos anos sessenta da minha escola primária. Não sei se foi o filtro do tempo ou se um ensinamento parcial ou incompleto, o certo é que de Viana do Castelo guardei apenas duas referências: ter sido a capital da província do Minho, a primeira do “Portugal do Minho a Timor” e a exuberância dos belos trajes tradicionais dessa região, que muitas vezes eram escolhidos como trajes de Carnaval nos desfiles realizados no então Parque dos Heróis de Chaves de Luanda, cidade que me viu nascer e crescer...

Fiquei alojada no “coração da cidade”, o que me deu a ocasião, nos poucos tempos livres de que dispunha, de dar um passeio pela urbe. Primeiro pelo Centro Histórico, onde me encantei com uma Viana que soube trazer modernidade a um património do passado numa harmonia serena. O edifício dos Paços do Concelho, a Casa da Mesericórdia, o Chafariz e tantos outros, saídos de uma outra época, resplandeciam revigorados pelas suas atribuições numa cidade que mostrava prosperidade em pleno século XXI.  Foi o Museu do Traje que estabeleceu uma ligação entre a Viana que eu descobria e aquela que guardava na minha recordação, pois logo imaginei quantos carnavais os trajes que ele guardava poderiam alimentar!

Museu do Traje

Um outro momento forte foi a subida ao Monte de Santa Luzia e a breve visita ao Monumento do Sagrado Coração de Jesus. De lá de cima, com a cidade a meus pés, perguntei-me se a benção para uma tal harmonia urbanística não viria desse Coração protector...

Filha de ilhéus e criada à beira mar, não poderia ter deixado de descer à margem do rio, lá onde ele se lança no oceano. O oceano que é o mesmo das ilhas das minhas raízes[1], da terra do meu berço[2] e do país que se tornou também meu[3]. O Oceano Atlântico, a estrada pela qual partiram as Caravelas e muitas delas, certamente, daquele ponto preciso onde eu me encontrava. Apazigua-me o mar, meu confidente de sempre. E foram longos os minutos que lá permaneci, falando comigo mesma ou com a menininha que fui, dizendo-lhe que, finalmente, conhecera Viana do Castelo e que ela não tinha apenas os trajes tradicionais dos carnavais da minha infância!

Mas a sabura[4] e a morabeza[5] de uma terra não são determinadas apenas pela beleza da sua paisagem natural ou dos seus monumentos. As suas gentes são o espelho através do qual se reflecte a sua alma. E em Viana senti a morabeza dos seus habitantes, nas ruas, nos comércios e, particularmente, nas pessoas que me acolheram e hospedaram, tratando-me como se da família fosse. Descobri o encanto de uma cidade que o conforto do progresso não parecia ter destruído o seu lado humano. E, quando, na manhã do meu regresso, partia para o aeroporto, a cidadã do mundo que habita em mim sentiu que deixava um chão[6] onde não se importaria de viver um dia...

30 de Abril de 2007








[1] Cabo Verde
[2] Angola
[3] Guiné-Bissau
[4] O que é bom (termo guineense)
[5] hospitalidade (termo caboverdiano)
[6] terra, local (expressão guineense)

jeudi 8 mai 2014

SEGUNDA GERAÇÃO DIASPÓRICA: ENTRE O SER E O SENTIR

Testemunho



IDENTIDADE

Busco raízes profundas
No sangue das Ilhas
A semente germinada
Em terras fartas do Maiombe
A flor desabrochada
Nas Colinas do Boé
E encontro
Os caminhos cruzados do meu eu

Caminhos de ontem
Caminhos de hoje
Horizontes infindos
Que fazem do meu eu
O ser de amanhã

Caminhos cruzados do meu eu
Trilhados por riquezas sem fronteiras
Criastes um Ser
Que é ele
O outro
E sou eu!
                                                                                 

Quando as fronteiras deixam de ter sentido e a Pátria não é mais do que o encontro de vivências cruzadas...

Foi em 1975, já com os meus dezanove anos completados, que me confrontei pela primeira vez com a questão identitária e nessa altura estava longe de imaginar o quão complexo pode ser o forjar de uma identidade quando se nasce e se vive além-fronteiras da terra mãe dos seus genitores.

De Cabo Verde trago as raízes, de Angola o berço e da Guiné-Bissau a escola da vida, países que têm como denominador comum o facto de terem pertencido ao “Império Português”, facto esse que não é alheio à forma inclusiva como se forjou a identidade que defino como sendo a minha hoje.

Nasci em Luanda, onde vivi até aos 19 anos. Pertenço, pois, a uma “segunda geração” de cabo-verdianos que foram para aquela então província portuguesa em busca de novos horizontes, levando consigo uma herança cultural que tão bem souberam transmitir aos seus descendentes.

Em casa, dominava a presença cabo-verdiana: o crioulo, os costumes, a música, a culinária, os amigos e, sobretudo, as histórias contadas pela minha avó materna do seu Cabo Verde da primeira metade do século XX. Esse Cabo Verde que se tornou também um pouco meu, preenchendo o meu imaginário com as histórias do Lobo e do Chibinho, das damas com pé de cabra ou simplesmente com as histórias do Dr. Paradinha, professor e chefe da minha avó no hospital da Praia...

Na escola impunha-se a presença portuguesa, sentida no entanto de uma forma meio ambígua: a cultura e a língua portuguesas, certo, a história de Portugal também, mas tudo isso acompanhado de um sentimento de rivalidade em relação à metrópole. Talvez por os colegas metropolitanos, desembarcados de fresco, considerarem os naturais de Angola como cidadãos de segunda. E essa rivalidade fez desenvolver um “sentir angolano” bem característico da juventude da minha geração não originária de Angola, sentir esse que se alimentava na cultura de raiz angolana de que a música se revelou como sendo um instrumento privilegiado de divulgação.

Nesta encruzilhada de referências, com um pano de fundo de uma guerra nas colónias portuguesas com vista à libertação dos respetivos povos do jugo colonial, eu sentia-me “angolana, filha de Cabo-verdianos” e essa ordem não era arbitrária... Cabo Verde era uma espécie de retaguarda, de referência inegável sem dúvida, mas era a terra dos meus pais, pois a minha era Angola...

A guerra civil que ali eclodiu em 1975, nas vésperas da Independência, levou a que partíssemos do país que me viu nascer.

Foi então a rutura causada por essa indesejada, inesperada e precipitada partida que me pôs, pela primeira vez, perante uma grande questão existencial: “O que sou realmente?. Pergunta à qual, ainda hoje, volvidos 37 anos, sou incapaz de responder com uma única palavra...

Na verdade consegui ultrapassar essa primeira rutura agarrando-me àquilo que o meu país de adoção, a Guiné-Bissau para onde fui viver, me oferecia: participar na realização dos seus sonhos de jovem nação. E nessa batalha da reconstrução nacional da pós-independência imediata, com a Unidade Guiné-Cabo Verde como pano de fundo, se forjou em mim um "sentir guineense", (que hoje defino antes como a faceta guineense da minha identidade), que veio de certa forma preencher a “orfandade” deixada em mim pela ablactação inesperada da minha terra natal. Essa identidade de substituição, ou que foi por mim vivida como tal, mesmo que de forma inconsciente, tornou-se quase exclusiva. Identificar-me, na altura, unicamente como guineense bastava-me e no entanto não tinha renegado as minhas origens nem o meu passado no país da Welvitcha Mirabilis.

Porém o processo histórico da Guiné-Bissau enveredou por percursos que a distanciaram dos sonhos e valores que tinham tecido essa minha “identidade”, fragilizando assim o sustentáculo desta. O golpe de estado de 1980, que pôs termo a toda veleidade de uma unidade entre a Guiné e Cabo Verde, e a guerra civil de 1998/1999 foram golpes fatais que fizeram ruir os alicerces dessa identidade. A nível mais pessoal cito a maneira como o Ministério dos Negócios Estrangeiros me afastou da Função Pública em 1996, sendo eu na altura conselheira para os assuntos económicos na embaixada em Bruxelas. Nenhuma explicação me foi dada de forma oficial ou até mesmo oficiosa e isso apesar das inúmeras cartas que enviei ao ministro de então, bem como aos seus sucessores, com cópias para a Primatura, Presidência da República e Ministério da Função Pública, pedindo uma explicação desse meu afastamento e um procedimento administrativo como previsto na lei da Função Pública. Por que razão terei sido afastada se nenhum processo disciplinar me foi feito por erro profissional? Porém tenho a consciência tranquila de ter exercido com afinco, brio e lealdade os cargos que ocupei na Função Pública guineense.

A conjugação destes factos, que muito me abalaram, colocou-me perante uma nova rutura. Desta vez, a rutura não era unicamente entre mim e o “meu país”, mas também algo de bem mais profundo. Era uma rutura dentro de mim mesma, entre aquilo em que eu pensava me ter tornado e o que inconscientemente eu era na realidade. Em duas palavras entrei numa “crise de identidade”!

Foi então que decidi fazer uma pausa para proceder ao balanço da minha existência: compreender de onde vinha e em que me tinha tornado ao longo da minha vida. Dessa pausa nasceu um romance cuja protagonista tem um percurso onde integração e exclusão se confrontam, num braço de ferro entre imposição e preservação de culturas, e em que o apaziguamento só pode ser alcançado pela busca da própria identidade numa dinâmica universal. Sem ser uma autobiografia, este exercício literário permitiu-me exorcizar as minhas deceções, angústias e ressentimentos ao mesmo tempo que me levou a uma redefinição da natureza da minha própria identidade.

Na verdade, pelas minhas origens cabo-verdianas, o meu nascimento, infância e juventude na Angola colonial, por conseguinte marcada também pela presença portuguesa, bem como pela minha vivência guineense desde 1975, liguei-me com laços tão profundos a esses países que seria redutor enclausurar em fronteiras geográficas uma identidade cujos alicerces afinal ultrapassam a contribuição própria de cada país. E a estas influências devo acrescentar o contributo de outros dois países onde vivi largos anos, embora de um outro modo: a França e a Bélgica.

Partindo do princípio de que a identidade cultural é determinada pelo conjunto de valores através dos quais se manifestam as relações entre indivíduos de um mesmo grupo que partilham patrimónios comuns, como a cultura, a língua, a religião, os costumes, entre outros, ela não é um processo estático, evoluindo à medida que a sociedade avança do ponto de vista cultural, social, económico e político. Do mesmo modo, a integração de um indivíduo no seio de uma nova sociedade vai de uma forma ou de outra influenciar a sua própria identidade por pô-lo em contacto com novos valores culturais, sociais e políticos.

Desta feita, o fenómeno da emigração desempenha um papel fundamental na miscigenação cultural, a nível de cada indivíduo emigrado, mas também com um efeito sobre as comunidades de origem, graças ao permanente intercâmbio entre o emigrante e estas. Se as primeiras gerações podem continuar a sentir-se ou a definir-se exclusivamente como cidadãs dos países de origem, com uma ligação quase visceral” à mãe pátria, a questão já não se põe de forma tão linear no caso das segundas gerações, estas já nascidas no país de acolhimento. Com efeito e apesar da forte presença da cultura de origem no seio familiar, o filho do emigrante vai, particularmente através da instituição escolar, conviver com outras culturas, outros hábitos que acaba também por assimilar. Duas situações podem daí advir. A mais corrente parece ser a da convivência sem conflitos dessas duas culturas, em que o indivíduo, não excluindo o facto de pertencer ao país dos seus progenitores, reivindica também a sua pertença ao país onde nasceu. A segunda e a mais rara é a da adoção exclusiva da cultura do país onde nasceu, rejeitando completamente a cultura de origem, comportamento geralmente determinado por um complexo de inferioridade da cultura de origem em relação à do país de acolhimento.

Pertencer a duas (ou mais) culturas é sem dúvida uma riqueza pessoal, mas por essa razão não deixa de constituir uma fonte de um certo desconforto”. Em primeiro lugar pelo facto de que entre o sentir” e o ser” existe um elevado grau de subjetividade. O indivíduo que se identifique com determinada comunidade que adotou, não é necessariamente visto pelos elementos da referida sociedade como sendo um dos seus. O mesmo é plausível com a própria comunidade de origem que o pode catalogar de “estrangeirado”, o que não deixa de provocar nele um certo constrangimento e sentimento de discriminação. Em ambos os casos, essas atitudes podem ter implicações na integração do indivíduo. Por outro lado, uma múltipla pertença pode criar a frustração de não se pertencer verdadeiramente a nenhuma das culturas: à de origem por não se ter uma vivência in loco da mesma e à do país de adoção, por não ter sido uma cultura de “berço”. Esta situação faz com que o indivíduo viva com uma dicotomia antagónica: a força e a fragilidade de quem abraçou vários horizontes. A força, pelo acumular de vivências cruzadas que lhe permitem saber estar com outros e a fragilidade, pelo gosto amargo que fica da sensação de finalmente não pertencer a lugar nenhum, por serem diversos os horizontes de referência.

No meu caso pessoal, ainda bem mais complicado pela mobilidade que tem caracterizado a minha vida, marcada por muitas horas di bai. A sensação que tive durante muito tempo era a de estar em permanente passagem, sensação essa que muito contribuiu para a “crise de identidade” que conheci em 1998. Na verdade, a minha “ancoragem” na Guiné-Bissau foi de tal forma exclusiva que, ao se desmoronarem os valores que me fizeram identificar com esse país, senti um enorme vazio. Porém isso não deixou de ser positivo, na medida em que me obrigou a tomar consciência de que eu tinha outras referências culturais e identitárias, determinadas pelas minhas origens e pela vivência anterior à guineense. E foi nessa base que me “reconstituí”, indo buscar às minhas origens cabo-verdianas os alicerces de uma identidade multifacetada para a qual contribuíram todas as minhas experiências de vida em cada um dos países onde vivi. Hoje, coabitam em mim a cabo-verdiana, a angolana e a guineense, num perfeito equilíbrio e complementaridade. Sou capaz de me sentir cada uma delas separadamente, isto é, sentir-me cabo-verdiana no meio cabo-verdiano, angolana com os angolanos e guineense com a comunidade guineense e no entanto ser capaz de me sentir como o vértice convergente das três. E é aqui que o que anteriormente defini como o denominador comum aos “meus” países (isto é o elo que Portugal acabou por ser entre as suas colónias) constituiu um fator de integração dessas três facetas identitárias pelas influências que teve nas culturas desses países e por conseguinte na minha identidade.

Graças a essa demanda identitária numa dinâmica transnacional, recusando-me a fechar-me dentro de fronteiras incapazes de abrangerem o “sentir” que é o meu, pude finalmente reencontrar a serenidade perdida no momento da rutura.  

Hoje a minha Pátria não se define como um espaço geográfico, mas sim como um espaço de encontro de vivências e culturas que não conhece a barreira das fronteiras e onde o “sentir” conta mais do que o “ser”...

Filomena Vieira