dimanche 26 janvier 2014

QUEM RI NO FIM, RI MELHOR




(Memórias do Liceu Salvador Correia)

Há pessoas que se prestam a serem os bobos da corte, naturalmente... inocentemente... ou... inconscientemente. Inconscientemente?

Estávamos no ano lectivo de 1966/1967, um daqueles anos em que as brincadeiras no Liceu Salvador Correia  não tinham ainda o gosto pronunciado pela irreverência e pela contestação conturbada dos meados da década de setenta. Imperava uma tradição de “brincadeiras a brincar”, transmitida de geração em geração, que ao longo dos anos se foi afinando e se tornou numa parte do “património cultural” daquela Casa. Coisas que nem ao demo lembrariam... O mínimo defeito, deslize ou desajustamento de um frequentador daquele recinto, dava logo lugar a uma alcunha que se impunha sorrateira mas definitivamente, passando mesmo a ofuscar o nome do alcunhado e varrendo-o das memórias, com o passar dos anos. Professores, alunos e contínuos foram vítimas dessa arte, pois, exigindo talento, arte não deixava de ser a de alcunhar o próximo. Gerações houve, indubitavelmente, que nunca souberam os verdadeiros nomes de certos professores, cujas alcunhas se instalaram uma ou duas décadas antes da sua passagem pelo Liceu...

Quem não se lembra do “Batata”? E quem se lembra do seu nome...? De onde lhe viera a alcunha?

O Batata foi, sem dúvida, um dos professores mais castiços que passou pelo Salvador Correia. Figura típica, saída direitinha de uma comédia “hollywoodiana”, tinha a má sorte de acumular duas deficiências, daquelas que os alunos não perdoam: via mal e ouvia pior! A conjunção destas duas particularidades não se notabilizou unicamente pela sua simultaneidade, mas sobretudo pela imbricação dos respectivos suportes correctores. É que o aparelho auditivo do mestre de português estava encaixado nas hastes dos óculos, onde reluziam fortíssimas lentes de míope. Da figura franzina, apenas sobressaía esse “aparelho” audiovisual, seu único meio de sobrevivência na selva salvadoriana, mas simultaneamente, instrumento da sua perdição nas mãos de imperdoáveis predadores, os seus cândidos alunos.

Foram inúmeras as partidas pregadas ao Batata. Ele fazia parte dessas pessoas que inocentemente, inconscientemente, passavam por ser o palhaço de serviço. Mas... fazia mesmo?

O terceiro período daquele ano lectivo chegava ao fim. Os últimos pontos estavam à porta e representavam a derradeira chance para muitos dos que nos trimestres anteriores tinham ficado aquém do dezito. Não abundando o amor aos livros de estudo, a passagem de ano teria que ser conseguida de outra maneira. Eh! Cada um amanha-se como pode! E o 5°E, onde a maioria dos alunos fazia já parte do mobiliário do Liceu, deitando as contas à vida,  resolveu salvar o ano com a “ajuda” do Batata. Bastava cortá-lo do mundo e a situação estaria controlada. Claro está que, para isolá-lo, era só necessário desembaraçá-lo do seu aparelho. A turma pôs-se toda a estudar a forma de lho roubar. Não como costumavam fazer, por uns minutinhos, só para vê-lo a atirar as beatas dos cigarros contra o vidro da janela, que pensava estar aberta, mas durante a aula inteira. Como agir, para que ele não entendesse que o acto tinha a ver com a prova escrita? Pregar-lhe uma rasteira à entrada da sala, para que ele caísse e os óculos se partissem? Hum... porque não?! Mas, coitado do homem, podia aleijar-se a sério e a situação complicar-se-ia.

Durante os três dias que precederam o do ponto de português, aquelas cabecinhas trabalharam muito, esforçaram-se mesmo, não para prepararem a matéria, mas para conseguir uma boa nota sem cansar a pinha com coisas fastidiosas.

No dia do ponto, já resignados ao espalhanço que os esperava, lá entraram para a sala, arrastando os pés e encafuando nos bolsos as últimas cábulas com as declinações de latim. Instantes antes do segundo toque, apareceu o Batata, num passo meio titubeante e rosto desnudado! Tinha partido os óculos na véspera e mandara-os para o concerto, explicou ao entrar na sala enquanto caminhava com os olhinhos apertados, para melhor discernir o caminho até à secretária.

Na turma fez-se um silêncio. Ninguém acreditava no que via! Não se costuma dizer  “Põe a mão que Deus te ajuda”? E não é que Deus ajudou mesmo?! Recompensou os árduos dias de labor com aquele presente: o Batata sem o seu instrumento de defesa. O dia estava ganho e o ponto também!

O silêncio foi rapidamente substituído por um burburinho. Num ápice, se trocaram opiniões e tomaram decisões: o Jajão faria o ponto e ditá-lo-ia aos outros. Enquanto isso, Batata distribuía os enunciados pelos alunos, num suposto silêncio que os seus ouvidos garantiam. A enevoada imagem dos alunos sentados e debruçados sobre as suas folhas, era sinónimo de que os discentes estavam concentrados no trabalho. Sentou-se à secretária e lá ficou, tamborilando a mesa, à espera que a hora passasse. De vez em quando, acendia um cigarro, cuja beata, minutos mais tarde, atirava para a janela. Ouvia-se, então, um leve ruído seco do impacto desta contra o vidro. Dessa vez, ninguém galhofava.  A rapaziada continuava serena e compenetrada na... espera do ditado do Jajão. Uns desenhando, outros escrevendo piadas, a fim de que o Batata, não se apercebesse de qualquer imobilismo suspeito na neblina que o rodeava

Passada uma meia hora, ouviu-se uma voz sussurrada, que vinha do fundo da sala:

– Eh pá! Ó Jajão, quando é que acabas essa porcaria, para ditares à malta?

Dezanove cabeças levantaram-se ao mesmo tempo e olharam para o professor. Este estava, imperturbável, a limpar as unhas com a ponta do canivete. Não reagiu. A mesma voz insistiu:

– Bolas, pá! Faltam vinte minutos para tocar!

– Estou quase a acabar! – respondeu Jajão no mesmo tom – Falta-me só o fim da redacção – e uns segundos depois acrescentou: – Já acabei.

Começou a ditar o ponto em surdina, mas de forma perfeitamente audível para todos. Mantinha a cabeça baixa como se estivesse a rever o seu trabalho e, de vez em quando, dava uma olhada no professor para se assegurar que ele não o ouvia. Quando a campaínha tocou, Jajão terminava o seu ditado. Ordeiramente, os alunos começaram a levantar-se e a ir entregar os pontos ao professor, que os acolhia com um sorriso. Estavam todos mortos de riso só de pensarem que mal imaginava ele que partia com vinte provas iguais! A malta esfregava as mãos de contentamento. O Jajão nunca tivera negativa a português, por conseguinte os resultados seriam, pelo menos, razoáveis. Daria certamente para tapar o onzezito que faltava...

A entrega dos pontos foi esperada com ansiedade. A semana foi longa! Finalmente chegou o dia. O Batata, já  com os óculos reavidos, distribuiu os pontos por ordem descendente de classificação, enquanto dizia, satisfeito, a cada aluno a quem entregava a respectiva prova:
– Nada mau! Nada mau!

Os “suficientes” sucediam-se infalivelmente e os últimos a serem chamados já se aproximavam do professor, confiantes na certeza do mesmo resultado.

Por fim o Batata chamou o último aluno. Olhou-o fixamente e falou-lhe num tom muito sério:

– Para a próxima vez, faça o favor de cuidar a apresentação  do seu trabalho. Essa gatafunhada toda não é letra que se apresente! – e entregou-lhe o ponto.

Jajão, pois que do Jajão se tratava, olhou para o canto do cabeçalho da folha de exercícios onde se inscrevia a classificação e leu as gordas letras escritas a vermelho: MEDÍOCRE.

Naturalmente...
   

DESILUSÃO



Abate sobre mim
O peso angustiante
De esperança perdida
Da crença desmentida

Desmorona-se o mundo de sonhos
Alicerçado em ideais juvenis
Que o correr da vida
Transformou em utopia

Nego-me a engolir
O nó da desilusão
Que me estrangula
Me sufoca...

Nego a entregar-me
A esse pranto vencido
Que me invade o peito
Me deixa muda
Estupefacta
Impotente!

Reservo-me o direito de acreditar
Que se sonho existe
Se sonho existe
É o pesadelo em que me encontro!

samedi 18 janvier 2014

NA CURVA DA VIDA



Na curva da vida
Um tempo de pausa
O olhar perdido
No âmago da alma
É dor
É tormenta
São coisas da vida
São vidas passadas

Bate a chamada
Na curva da vida
Larga o passado
Cria o futuro
Não olhes atrás
Fixa o horizonte
E corre veloz

É curta a vida
É tua vida
É tua sina
É tua luta
Não voltes atrás
Responde à chamada
É teu destino
É teu caminho
Se quiseres ser feliz
Pelo resto  da vida...

Dezembro de 2009


A EPOPEIA DA ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO


Ao embarcar com os marinheiros nas caravelas, a Última flor do Lácio[i] não imaginava a aventura que iniciava. Atravessou oceanos, dobrou cabos, venceu tempestades e batalhas marítimas, aportou continentes longínquos, subiu rios, desceu colinas, visitou povos, negociou, cristianizou, declarou guerras, ocupou terras, fez casamentos, gerou filhos e criou identidades!

Ela, a Língua de Camões, que, ao atravessar séculos e continentes, também se tornou na de Machado de Assis, Alda do Espírito Santo, Agostinho Neto, José Craveirinha, Adulai Silá, Baltazar Lopes e Luís Cardoso.

No seu movimento centrífugo, impôs-se a outras culturas que, paradoxalmente, dela se apropriaram fazendo-a sua ou criando outras a partir dela e de idiomas próprios. A adopção da língua portuguesa como língua oficial nos países outrora colonizados por Portugal e os crioulos de base lexical portuguesa, espalhados um pouco por todo o mundo, denotam esses factos.

Porém, o português não saiu ileso dessas convivências. Ao querer impor-se como língua do outro, este impulsionou-lhe o seu cunho pessoal, introduzindo, (primeiramente ao nível da oralidade, por falantes pouco escolarizados e, em seguida, ao nível da escrita, com o desenvolvimento das literaturas desses países) mudanças da fonética e da sintaxe e inovações lexicais e morfológicas. A evolução da literatura dos países africanos de língua oficial portuguesa põem bem em evidência esses fenómenos que autores como, por exemplo, Mia Couto e Luandino Vieira exploram nas suas obras. O português do Brasil, com norma própria, é, poderíamos dizer, um exemplo mais acabado da apropriação desse idioma por povos cultural e geograficamente distantes.

A língua portuguesa ao dar-se enriqueceu culturas pela abertura que lhes proporcionou a novos universos do conhecimento, mas saiu também enriquecida dessa dádiva, por ter recebido desses povos contributos que a tornaram numa língua de convergência de povos falantes de outros idiomas maternos e que através da qual edificaram identidades e nações.

Hoje o português reúne cerca de 220 milhões de cidadãos dos 8 Estados[ii] da CPLP[iii] que a utilizam como língua oficial e de comunicação comum. Esta partilha multicontinental fez com que este idioma se impusesse também como língua de comunicação internacional, tornando-se língua oficial e de trabalho de organizações internacionais e regionais.

E, assim, num movimento centrípeto, em que os regionalismos ter-se-ão universalizado, a língua portuguesa, viajante universal, regressará una e plena na sua diversidade, mas sempre em perpétua evolução, traduzindo a morabeza[iv] da convivência dos seus povos e contando os mujimbos[v] das suas gentes. Uma língua que relatará as conversas das banjas[vi] dos homens grandes[vii], cachimbando[viii] sobre a vida da tabanca[ix]. A língua que o poeta escolherá para cantar o gingar da moçoila enquanto a brisa leve-leve[x] lhe afaga os cabelos...

24.05.08





[i] Olavo Bilac (1865-1918), poeta brasileiro e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, no seu poema A Língua Portuguesa, designa a língua portuguesa, idioma neolatino, como sendo a “última flor do Lácio”. O Lácio (em latim, Latium; em italiano, Lazio) é uma região da Itália central cuja capital é Roma. O seu nome, originalmente Latium, remete aos latinos, povo do qual os romanos descendem e cujo idioma, o latim, tornou-se a língua formal do Império Romano, tendo sido amplamente difundido nos territórios sob o seu domínio. De enorme importância histórica e cultural, foi o local onde Roma foi fundada. (www.wikipedia.org)
[ii] Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.
[iii] Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
[iv] Amabilidade (Cabo Verde)
[v] Boatos (Angola)
[vi] Conselho, assembleia (Moçambique)
[vii] Idosos (Guiné-Bissau)
[viii] Reflectindo (Brasil)
[ix] Aldeia (Guiné-Bissau)
[x] Devagarinho (S. Tomé e Príncipe)

samedi 4 janvier 2014

LONGE DE BO

Fonte: odairpoetacacerense.blogspot.com


Tempo infinito é sodade
Tempo de spera é tormenta
Longe de bo é castigo
Ai nha cretcheu que sodade!

A’m dzê mar pa el leva-me
Na ondular de sê ondas
El dzê el ca podê
Mode sofrimento é grandeza de alma

Ai nha cretcheu que sodade
Nês vazio de bo ausência
A’m contá dias
A’m tchora
Ma tempo ca ti ta passa

Senhor Deus de céu
Bocê trazê-me de volta
Nha cretcheu na terra longe
Pa m’braçal
Pa m’bejal
Pa m’dzêl ma sem el
Es vida é um tormenta!


Agosto de 2010

OS FILHOS PRÓDIGOS

Fonte: jesusmodeon.blogspot.com

Homenagem ao meu liceu*
Numa cidade à beira-mar plantada, vivia um homem muito garboso, pai de muitos filhos de diferentes mães. Eram tantos os filhos que lhes perdera a conta. Mas pai extremoso, ocupava-se de cada um como se fosse o único.
Com a sua numerosa prole, vivia no cimo de uma colina que dominava toda a cidade. Da janela do seu quarto, passava horas a fio a contemplar o casario que vira crescer a seus pés. Lembrava-se ainda dos tempos em que a sua morada ficava isolada do burgo que via, aos poucos, vir ter com ele. Do que mais gostou, foi do jardim construído mesmo à frente da sua porta, resvalando pela encosta da colina num colorido prazenteiro. Como ele se deleitava a passear por esse jardim ao fim da tarde, quando o sol, de mansinho, se aproximava do horizonte, tingindo o céu de um laranja ocre! Lá ia majestoso, rampa abaixo, no seu impecável e imutável fato amarelo, camisa branca e gravata cor de tijolo, condizendo com o chapéu do mesmo tom. Os sapatos pretos, cuidadosamente engraxados e polidos ao som dos estalidos dos movimentos do pequeno graxa que, religiosamente, uma vez por semana, ia à sua casa para tão nobre tarefa, davam o toque final àquela elegância ímpar nas redondezas. Deixava atrás de si, um leve odor a água de colónia, que em dias de chuva se misturava com o cheiro da terra molhada.
Durante muitos anos viveu feliz com os filhos. A eles transmitiu o que sabia e os valores que defendia. Procurou dar-lhes uma educação esmerada, preparando-os para a vida. Comprazia-se ao vê-los cúmplices nas suas brincadeiras inocentes, que fingia não perceber. Mas estava atento aos problemas de cada um e todos eles sabiam que, além de um pai, tinham nele também um amigo e confidente. Orgulhoso, via-os crescer, tornarem-se homens e mulheres robustos, prontos a enfrentar os desafios do destino.
Um dia, chegou a guerra e a tranquilidade da família ficou abalada. O pai deu-se conta que preparara os seus filhos para tudo ... menos para uma guerra! O pânico instalou-se e muitos dos filhos decidiram partir. O homem do fato amarelo, com lágrimas nos olhos, tentou ainda dissuadi-los:
- Mas para onde irão vocês, meus filhos? Esta é a nossa terra! Se partirem jamais se sentirão em casa em sítio algum...
- Vamos para a terra das nossas mães... - responderam decididos, mas sem conseguirem esconder a mágoa daquela decisão. - Não queremos a guerra e impotentes para evitá-la, preferimos partir!
Para trás deixaram o pai e os irmãos que não puderam ou não quiseram partir. Novos mundos percorreram e novos mundos descobriram. E a profecia do pai se confirmou: apesar da paz e da vida equilibrada que conseguiram construir, jamais se sentiram em casa em parte alguma. O país onde nasceram e do qual haviam partido, assombrava os seus sonhos, qual alma penada buscando o caminho do paraíso. Com a distância e a saudade, as recordações da infância tornaram-se magnânimas, perfeitas e inigualáveis!
Os anos foram passando e a guerra eternizando-se. Na casa do alto da colina, os efeitos da guerra faziam-se sentir. Os filhos traziam agora, o rosto marcado por anos de privações. O pai envelhecia de dia para dia, consumido pela doença que lhe comia as entranhas. Seus ossos estalavam ao mínimo movimento. O coração perdia-se numa arritmia desenfreada. Sofria do corpo e da alma. A garbosidade de outros tempos, dera lugar a uma prostração quase permanente. Sentia já os filhos órfãos, por não poder ser-lhes de préstimo algum. Era ele agora que dependia deles. No seu leito, apenas uma coisa aguardava: a morte que o viesse libertar daquele sofrimento. Não mais voltou a espreitar a cidade pela janela do seu quarto, ou a descer o jardim da encosta. O seu fato amarelo tornara-se deslavado e lá estava num cabide, pendurado no prego da parede. Os sapatos perderam o brilho e o graxa nunca mais viera poli-los. Agora sem uso, jaziam de baixo da cama, cobertos de pó. Os filhos olhavam para o pai com uma tristeza impotente. Sabiam-no muito doente, mas o que fazer? O médico que viera vê-lo, havia uns tempos, dissera-lhes que só com muito dinheiro se poderia fazer um tratamento, na nova clínica privada da cidade. Onde ir buscar esse dinheiro? Os magros salários reunidos, mal chegavam para acalentar a fome de cada dia... e desalentados continuavam a ver o pai morrer.
Quando a guerra acabou, o pai já quase não tinha forças para se levantar e foi na cama que festejou com os filhos a tão esperada paz. Agora só lhe faltava uma coisa para poder partir serenamente: rever os filhos ausentes! Por onde andariam? Nunca mais tivera notícias deles!
Então, nasceu o sonho!
- Porque não tentarmos saber por onde andam os nossos irmãos? Talvez eles possam ajudar-nos a tratar do nosso pai e que maior alegria poderíamos dar-lhe, senão fazer com que voltasse a ver os seus filhos? – a ideia foi lançada por um e abraçada por todos.
Nas terras longínquas, os irmãos receberam a notícia de que seu pai estava moribundo e que o seu último desejo, seria reunir uma derradeira vez todos os filhos. E numa só voz responderam presente. O regresso à terra natal não se fez esperar! A alegria de voltarem a ver o pai e os irmãos, atenuava a tristeza de não reconhecer naquela cidade, a que os vira nascer. Vieram todos com a missão de trazer de novo o pai à vida e logo no dia seguinte à chegada, levaram-no cuidadosamente para a clinica nova da cidade. Comovido pela alegria de rever os seus e esperançado em poder restabelecer-se, o velho entrou na clínica pelo seu próprio pé, num esforço que ninguém mais pensava de que ele ainda fosse capaz. Sentou-se numa cadeira que lhe indicaram e com a voz ainda trémula, disse à jovem enfermeira que o recebera:
- Quero ver um doutor, o melhor que vocês cá têm, porque esta velha carcaça que carrego, precisa de umas mãos experimentadas para voltar a pôr tudo no lugar. Agora que os meus filhos estão todos reunidos, quero viver para ver crescer os netos que me deram.
- Sem dúvida, sem dúvida! – respondeu a enfermeira – Mas antes, temos que fazer a sua papelada. Ora, diga-me lá o seu primeiro nome.
O velho endireitou o tronco, limpou a garganta e respondeu numa voz segura e sonora:
- Salvador Correia.
- E o seu último nome?
- Mutu Ya Kevela.

* Liceu Salvador Correia, Luanda, Angola, atualmente Escola Mutu Ya Kevela

DÉTAILS


Source: debondan.wordpress.com


Je coupe et découpe
Le manteau de la vie
Détails collés
En synchronies
De temps et d’espaces
De couleurs et d’odeurs
De gestes et de faits

Je coupe et découpe
Des morceaux de vie
D’ici
D’ailleurs
Et de plus loin encore
Détails perdus
Retrouvés dans le temps
Dans des espaces laissés
Dans les sentiers de la vie

Je colle des retailles
Morceaux de vie
Mémoires du temps
Chemins croisés
Détails et raccourcis
Qui composent la vie !


DETALHES


 
Fonte: artesanato.culturamix.com

Talho e retalho
O manto da vida
Detalhes colados
Em sincronias
De tempos e espaços
Cores e cheiros
Gestos e feitos

Talho e retalho
Pedaços de vida
Daqui
De acolá
E de além mais
Detalhes perdidos
Achados no tempo
Em espaços deixados
Na senda da vida

Colo retalhos
Pedaços de vida
Memórias do tempo
Caminhos cruzados
Detalhes e atalhos
Que fazem a vida!

MARA CASSAMENTI

Fonte: panoramio.com


O sol já ia alto quando Mamadú e Cau Tcherno se apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça. Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene. Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria  ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...
Acelerou o passo quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.
–        Sala malecum – disse Mamadú retirando o súmbia.
–        Malecum salam – retorquiu o outro.
Sucederam-se em seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas. Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....
–        O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em que cada
um dos presentes se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú lhe oferecia.
Aos poucos, atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao  bentém os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota na tabanca.
Terminados os cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.
–        Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão. Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o também para os dele.
Serifo perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.
O homem grande prosseguia  o seu discurso:
–        Tenho um grande respeito pela tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um “hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.
–        Mamadú, que está aqui sentado, filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a quem nada faltará.
Mamadú ia aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que
se alternava com o movimento do tique da direita para a esquerda.
–        De que filha minha estás a falar, Cau Tcherno?
–        Da... da Ádama – cortou abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.
–        Hum... – fez Serifo num mugido quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da moça.
–        Essa mesma! – respondeu apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a pequena.
–        Hum... – voltou a fazer o pai da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma das filhas em casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a resposta para não trair os seus pensamentos.
–        Dá-me uns dias para pensar – disse fingindo um ar distraído.
Mamadú tirou do bolso três  nozes de cola e ofereceu-as a Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os presentes.  
Após a partida dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua,
mãe de Ádama.
Debo! – disse da porta metendo a cabeça dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a mulher do interior. 
E, puxando o banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.
–        Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na varanda.
Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para fora as extremidades das suas quatro tranças.
–        Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.
Era verdade que Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo. Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil encontrar nos tempos que corriam.
–        Acho que tens razão. Ao menos ele é rico... – disse Nem Aua esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por ela mesma não saber...
A notícia foi acolhida pelos grandes da morança com satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada, sim senhor! Um cunhado que valia a pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama! Deus, obrigado!
A noiva foi a última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú. 
     –        Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo não vai acabar! Tu vais te
habituar! A vida é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que ganha!
–        Com aqueles tiques todos... – quis contrariá-la a filha.
–        Isso é obra de Deus, minha filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e que não lhes falta com nada!
Ádama não voltou a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não havia na morança par mais harmonioso. Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala!  Inspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. Nem Aua observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse mais para si do que para a mãe:
     –        Djitu câ tem... – e voltou às suas lides domésticas.
   
Glossário  
Badjuda (t.crioulo): menina, rapariguinha.
Bentém (t. crioulo): lugar coberto com esteiras, onde os habitantes da morança se reúnem para conversar e onde em geral são recebidas as visitas.
Bubu: camisão.
Cau (t. fula) : tio.
Crintim (t. crioulo): cerca feita em esteira.
Cunhadaria (t. crioulo, de cunhado; cunhado: qualquer membro da família por aliança: sogro, cunhado, genro, concunhado...): família por aliança.
Debo (t.fula): mulher.
Djam’tum: (exp.fula): estou bem, está tudo bem.
Djarama (t.fula): obrigado.
Djumbâi (t. crioulo): encontro para conversa.
Falar mantenha: cumprimentar.
Homens grandes: homens idosos.
Mandjuas: pessoas da mesma geração, muitas vezes que cresceram juntas.
Mantenhas (t. crioulo): cumprimentos.
Mara cassamenti (expressão crioula, trad. literal : amarrar o casamento) :  pedido de casamento, oficialização do noivado; a noz de cola é oferecida simbolicamente ao pai da noiva pelo noivo ou seus familiares.
Morança : conjunto de habitações pertencentes à mesma família.
Nem (t. fula): mãe.
Sala malecum (exp. árabe): que a paz esteja contigo.
Malecum salam (exp. árabe): que contigo esteja a paz.
Súmbia: espécie de boné.
Djitu ca tem(exp. crioula que indica resignação): não há outra solução; paciência.