- Taíbooo!
- Nam?
- É a terceira vez que te
chamo!
Taíbo largou precipitadamente a corda de saltar e foi a correr responder à
mãe. Quando Binta prolongava a última sílaba do seu nome era sinal de
impaciência e que ela devia despachar-se a ir ter com ela. Caso contrário viria
buscá-la com um puxão de orelha, bem doloroso. Binta estava já à porta da morança com a cabaça à cabeça e Djenabo,
a irmãzinha de Taíbo, às costas. Ia buscar água à fonte, como todas as manhãs,
logo cedo. Taíbo acompanhava-a para ajudá-la a trazer Djenabo no regresso,
enquanto a mãe carregava a cabaça da água. Mais tarde, quando as suas forças o
autorizassem, seria ela a encarregar-se dessa tarefa, sozinha. Por enquanto
parecia-lhe uma obrigação agradável, que fazia com prazer, como se fosse um
passeio. A mãe seguia à frente e ela ia saltitando atrás, parando de vez em
quando para apreciar à sua volta uma ou outra coisa que lhe parecesse
interessante: uma borboleta colorida, voltejando por cima da sua cabeça ou uma
cabra desgarrada do rebanho, aos balidos chamando pelos outros. Depois corria
para apanhar a mãe, que jamais esperava por ela. “ Tenho mais que fazer do que
ficar aqui à tua espera!”, dizia-lhe sem abrandar o passo, quando Taíbo lhe
pedia que fosse mais devagar.
Quando chegaram à fonte, nessa manhã, reinava uma grande algazarra no seio
do mulherio, que também viera à cata da água. Ao verem Binta a aproximar-se,
calaram-se todas e uma delas falou bem alto para que fosse ouvida:
- A Binta irá certamente
ajudar-nos!
- O que se passa? - Indagou a interpelada admirada. - Em que posso eu ajudar?
- O Saini e a Mariama vão
ter que deixar a tabanca! - Disse uma das mulheres.
- Porquê?
- Então não sabes o que
se passou?
- Não!?– Binta arregalou
os olhos, como era seu hábito, quando alguma coisa lhe escapava.
- As cabras do Saini
comeram toda a hortaliça do lugar do
Calilo e ele não quer pagar os prejuízos. Há dois anos atrás, aconteceu o mesmo
e as coisas acabaram por ficar sem reparação. Mas desta vez o Calilo apresentou
queixa ao Chefe da tabanca que
decidiu que o Saini terá que se mudar para um outro lado, se não pagar os
estragos. A Mariama está desesperada! Diz que o marido não tem dinheiro e não
sabem para onde poderão ir. Com essas cabras indisciplinadas, nenhuma tabanca vai aceitá-los!
- É bem feito que corram
com eles! - Gritou uma outra mulher.- Por que razão não tomam conta das suas cabras como toda a gente faz?! Até
parece que fazem de propósito!
- Nisso tens razão,
parece mesmo provocação! - Aquiesceu Binta - mas deve haver uma outra alternativa à expulsão deles…
- Era isso que algumas de
nós queríamos pedir-te … O teu marido poderia falar com o irmão, e pedir-lhe
que mudasse a pena…
- Vou ver o que posso
fazer - concluiu Binta, com segurança.
Naquele instante Taíbo sentiu-se orgulhosa da mãe! Bastara uma palavra sua
para que a barafunda acabasse! Ela continuava serena como se nada tivesse
passado, segura do seu poder, perante os olhares admirativos das outras, cujos
maridos em quase nada podiam influenciar o Régulo da tabanca. Encheu a cabaça de água, entregou Djenabo à irmã e tomou a
direcção de casa.
Binta era a terceira mulher de Serifo Baldé, irmão e barulá do Régulo de
Maná. Era alta e esbelta e vestia-se com gosto. Ela mesma escolhia os modelos
para os seus bubus bordados e complets que Saico, o velho costureiro
da tabanca, cosia com deleite por
apreciar o bom gosto da sua cliente. Nunca se esquecia do lenço a combinar,
amarrado de um jeito que até parecia um chapéu. “Uma mulher deve cuidar da sua
imagem”, dizia à filha quando ela vinha sentar-se ao seu lado, para vê-la
escolher a roupa que usaria numa ocasião especial. Era a mulher mais elegante
da tabanca e por isso alvo de muita
inveja por parte das outras, que a achavam pretensiosa. Para elas Binta não
passava de uma impostora, que agia
assim só para chamar a atenção do marido. Serifo Baldé conhecera-a numa ida a
Sintchã Baciro e, pelo que consta, ficara subjugado pela sua beleza. Um mês
mais tarde, Binta chegou à tabanca
feita noiva nova. Ele mesmo tratara
do casamento e, ao que parece, sem ter consultado as suas duas mulheres. Tinha
uma certa preferência por ela, que mal conseguia dissimular, embora se
esforçasse por isso.
Quando chegaram a casa vindas da fonte, naquela manhã, Binta parecia
preocupada. Mariama era sua prima irmã e a perspectiva de a ver numa afronta
inquietava-a. A sua expressão só se desanuviou depois de ter chamado o marido à
parte, após a janta. Foi ele que
adoptou um ar sério depois de se ter separado dela. Binta reapareceu serena, no
seu jeito habitual, como se tivesse transferido para os ombros do marido o peso
que lhe esmagava o peito.
Foi com um ar preocupado e um passo apressado que Serifo se dirigiu à
morança do Régulo que ficava na tabanca vizinha. Não seria coisa fácil
convencer o irmão a mudar a decisão, pois sabia que este não tinha Saini em
muita estima desde os tempos em que, ainda rapazes, disputaram-se por cauda de
uma mesma badjuda. Além disso, havia
que convencer também o chefe da tabanca a voltar atrás com o seu veredicto. Ao
aproximar-se da morança, viu de longe que Mamadú, o Régulo, não estava só no
seu bentém. O fumo que saía do seu canhoto era sinal de que a pequena
assembleia analisava uma questão de suma importância, pois Mamadú só fumava canhoto quando precisava de se
concentrar para tomar uma decisão importante. Vir falar do problema das cabras
do Saini num momento desses não seria a decisão mais acertada. Mas mesmo assim,
encheu-se de coragem e dirigiu-se ao bentém.
- Salamalecum – saudou tocando com a mão direita no seu peito.
- Malecumsalam – responderam em uníssono os presentes.
- Peço desculpas se vos interrompo... – Disse, indo directo ao assunto,
deixando de lado o ritual das saudações individuais em que cada um indaga sobre
a vida da morança dos outros e dá notícias sobre a sua própria família, num
compasso marcado por “djam’tuns” que vão sendo pronunciados cada vez mais
discretamente.
– Sabes bem que estamos ocupados, mas se nos interrompes é porque deves ter
um motivo muito forte – redarguiu Mamadú.
– Bem... Na verdade, o que aqui me traz pode parecer irrisório comparado
com a questão que vocês estão a debater...
– Diz o que te traz e deixa-te de rodeios! – Ordenou o irmão com um ar
impaciente.
– É sobre o Saini e a história das cabras...
– Mas esse problema já foi resolvido pelo chefe da tabanca! O que é que há
mais? – retorquiu o Régulo.
– É precisamente a decisão do Corca que causa problema... O Saini tem que
abandonar a tabanca com a sua família e as cabras e não sabe para onde ir!
Queria pedir-te que interviesses para que essa decisão seja anulada e
definisses um outro castigo...
– Serifo, sabes bem que não gosto de intervir na gestão dos problemas dessa
natureza das tabancas. Isso é da competência do chefe. Não é a primeira vez que
o Saini cria confusão na tabanca por causa das suas cabras. Ele teima em não
querer amarrá-las e deixa-as andarem por todo o lado. Não tenho tempo para me
ocupar disso agora!
Serifo retirou-se sem acrescentar palavra alguma. Sentiu que não estava à
altura para fazer face ao irmão. Regressou à sua tabanca cabisbaixo, sem saber
o que dizer a Binta que tinha depositado toda a sua confiança nele.
– O Mamadú recusou-se a mudar o veredicto? – Perguntou-lhe incrédula a
mulher quando lhe contou a conversa tida com o irmão – Isto não vai ficar
assim, não! Amanhã irei eu mesma falar com o teu irmão. Como pode ele aceitar a
expulsão de membros da sua própria família?
– Não creio que consigas convencê-lo. Trata-se do Saini... Ele não gosta
dele por causa de velhas rivalidades – tentou dissuadi-la o marido.
– Ora aí está! Precisamente por ser por causa de velhas histórias de combossaria não é justo que a sentença
seja dessa natureza. Já imaginaste um só instante que as outras tabancas
poderão rejeitá-lo também por causa do motivo que o leva a deixar a nossa?
Amanhã bem cedo irei falar com o Mamadú!
Quando o sol despontou na manhã seguinte, Binta estava já pronta para a sua
viagem até à morança do cunhado. Vestiu-se a rigor, escolhendo o melhor dos
seus complês. O lenço elegantemente amarrado à volta da cabeça, deixava sair
quatro grossas tranças que contrastavam com os brincos coloridos e longos que
pendiam das suas orelhas. Serifo, ao ver a mulher naquele aparato, sentiu uma
ponta de orgulho porém mitigado por uma ponta de ciúmes, pois sabia o efeito
que Binta provocava em todos os homens.
– Irei contigo – disse-lhe.
– Não! Irei sozinha. A tua presença só atrapalharia. Pedirei a um dos
rapazes que me acompanhe – respondeu decidida.
Montada num burro e acompanhada por Abasse, filho de Serifo e Djuma, sua
primeira mulher, Binta dirigiu-se à tabanca do Régulo com a firme convicção de
que voltaria com uma nova sentença para o caso das cabras de Saini. Ao transpor
o crintim da morança de Mamadú rejubilou-se quando viu o cunhado sozinho
sentado no bentém e matabichando o seu incortornável badadje da manhã. Mamadú
apercebeu-se da sua presença e levantou-se logo para acolhê-la.
– Salamalecum! – Disse a cunhada.
– Malecumsalam! – Respondeu o Régulo aproximando-se dela.
– Como vai essa saúde? – Perguntou Binta, dando início aos cumprimentos.
– Djam’tum. – Redarguiu o Régulo.
– E a tua mulher Djenabu?
– Djam’tum.
– E a Aua?
– Djam’tum.
E assim prosseguiram até que cada um se inteirou da saúde de cada membro da
família do outro, não esquecendo de perguntar como iam as colheitas e as
alimárias... Terminadas as praxes das boas-vindas, Mamadú que raramente recebia
a visita da cunhada sem ser acompanhada por Serifo, deixou escapar a sua
curiosidade:
– Cunhada, o que te traz por cá a uma hora tão matinal e sem a companhia do
teu marido? Não me digas que vocês se zangaram? – Gracejou para esconder a sua
curiosidade.
– Não, não nos zangamos. Sabes bem que não tenho motivos para me zangar com
o teu irmão...
– Como também sei que caso fosse o caso tu jamais aceitarias que outros
resolvessem o teu problema – acrescentou Mamadú, rindo, pois conhecia bem a
reputação da cunhada como “senhora do seu nariz”.
– Ainda bem que sabes disso! – Disse ela retribuindo com uma risadinha. – O
que me traz cá – disse, enquanto se sentava no banco que o cunhado lhe indicava
– é essa história do Saini e das suas cabras e da decisão do Corca.
– Ah! Eu devia desconfiar! Tenho a certeza que foste tu que enviaste o
Serifo ontem... – Enquanto falava Mamadú agitava o indicador direito em
direcção a Binta. – Mas que queres que faça se o Corca já tomou uma decisão? É
ele o chefe da tabanca.
– E eu que pensava que tu fosses o Régulo de todo o Maná!... Que desilusão
a minha! – Aventurou-se a cunhada olhando-o nos olhos e fingindo um grande
desprezo.
– Mas eu sou o Régulo de todo o Maná! – Respondeu num tom mais elevado e manifestando
uma certa irritação. Não se tratasse de Binta já teria corrido com a visitante.
Mas aquela mulher tinha um poder qualquer que lhe escapava e ao mesmo tempo o
subjugava.
– Ai é? Então prova-me agindo como um Régulo e não como um antigo rival! –
Provocou, num desafio que sabia ser perigoso. A qualquer momento ele poderia
correr com ela e com isso criar problemas com Serifo. Porém Binta não vacilou
um só instante e continuou a fixá-lo ostensivamente. Ela sabia que tinha ido
longe demais, ultrapassando os limites permitidos a uma mulher e ainda mais em
relação a um Régulo. Mas ao mesmo tempo sentia que se queria salvar a família
da prima, seria ali ou nunca. Mamadú desviou o olhar e deixou escapar um
suspiro. Passou a mão pela cabeça pelada e recostou-se na sua cadeira de
descanso. Que ridículo ele se sentia! Deixar-se desrespeitar por uma mulher,
pela mulher do seu irmão mais novo, ainda por cima! Que afronta tão grande! Mas
Mamadú não se atreveu a tomar a decisão que se impunha. “Que mulher!”, pensou.
“Será ela assim com o Serifo no seu dia-a-dia?”. No seu íntimo travava-se uma
luta entre o exaspero e a admiração que a cunhada provocava em si. Permaneceu
calado ainda por alguns momentos que pareceram uma eternidade para Binta. Por
fim, esfregando o rosto com ambas as mãos, acabou por falar:
– Anularei a decisão do Corca apenas com uma condição: que sejas tu a
responsável se as cabras do Saini voltarem a criar a zizânia na tabanca. Essas
cabras estarão a partir de hoje sob a tua responsabilidade. A ti caberá
vigiá-las de agora em diante. E o Saini terá que dividir
com o
Calilo, neste e no próximo ano, as suas colheitas hortícolas e
oferecer-lhe uma cabra para cada uma das duas próximas festas religiosas.
Binta respirou aliviada e mostrando já uma certa docilidade respondeu ao
cunhado:
– Aceito as tuas condições. Podes crer que tudo farei para que essas cabras
não voltem a estragar o lugar de ninguém. Agradeço a tua compreensão e o Saini
ficar-te á eternamente grato pela tua condescendência. Agora tenho que ir
andando. Sou eu que tenho o fogão esta semana e a manhã já está avançada.
Levantou-se e ajeitou a prega da saia. Com a elegância de uma gazela
apartou-se do cunhado que permaneceu no crintim, provavelmente a tentar
compreender a cena que acabara de viver. Entretanto ouviu Binta a dizer
enquanto se afastava: “Deus é grande!”. Mas ela não pôde ouvir o
comentário que Mamadú sussurrou entre dentes: “E tu não ficas atrás!”