dimanche 6 octobre 2013

SERIA UM CASO PARA SHERLOCK HOLMES?



(Memórias do Liceu Salvador Correia*, I)


Naquela terça-feira, Carlitos saiu de casa muito mais cedo do que o habitual. Passara a noite em branco, depois de uma infrutífera semana à cata de um plano para xingar a cota Catota, que, havia uns tempos, vinha implicando com ele nas aulas.

Bem, implicar é uma maneira de se dizer, pois Carlitos não era peça que se cheirasse. O seu amor ao liceu não se manifestava apenas pelo número de anos que já lá andava, mas também
pelo zelo em fazer com que todos se sentissem felizes durante as horas que, quotidianamente, passavam entre aquelas paredes amarelas. “Todos”... eram os seus colegas de turma, claro! E essa felicidade passava, quase infalivelmente, pela infelicidade dos seus instrumentos hilariantes: os professores. Catota, a roliça professora de Canto Coral, fazia parte dos seus predilectos. Talvez pelo seu aspecto um tanto ou quanto barroco, que lhe dava um ar naturalmente cómico. Ou talvez... Bem, o certo é que a professora de canto, em todas as aulas, tinha direito a um “tratamento especial”, graças ao heróico Carlitos. Até que um dia a dama se fartou das brincadeiras e começou a tomá-lo de ponta. Era como se o feitiço se tivesse virado contra o feiticeiro. Nada perdoava ao rapaz que, mal abria a boca para lançar uma piada, ouvia logo: - O menino cale-se e fique quieto!

O copo de água transbordara na última aula quando, debaixo da risota da turma toda, Catota mandara Carlitos para o fundo da sala, excluindo-o do grupo coral que deveria representar o Liceu nos Jogos Florais daquele ano. Motivo: o menino desafinava como nunca visto! Porém, a professora não dera conta que esse desafino era mais uma fina brincadeira do rapaz, que deixara morta de riso a turma e que mais ainda ficara, com a sentença da professora. Esta não se apercebeu que, ao mandar Carlitos para o fundo, ganhava um ponto no combate imaginário do aluno contra ela. Carlitos foi para o fundo praguejando e, talvez mesmo, prometendo vingança. Não estava nos seus planos ser relegado para as traseiras e, menos ainda, ser motivo de chacota dos outros todos, por esse motivo. Ela não esperaria pela demora, jurava a si mesmo o rapaz. Tinha sete dias para preparar a sua vingança. Haveria de lhe pregar uma, que jamais ousaria vexar um bravo como ele diante dos outros! Que aconteceria à sua reputação, se deixasse passar essa afronta? Na! Homem é homem e a honra lava-se!

Carlitos passou a semana mais laboriosa da sua vida de estudante, fazendo planos e imaginando todas as peripécias e artimanhas para levar avante o seu desejo de desforra. Porém, nenhuma delas lhe satisfazia. Se aquela de pôr um “punaise” na cadeira da professora não era nada original, muito menos o era a de cobri-la com pó de giz do apagador. Não! Aquilo era assunto para coisa mais... elaborada, mais... inédita. Isso mesmo! Era preciso encontrar uma ideia totalmente nova nos anais da História salvadoriana! Uma ideia NOBRE! Sim... mas... qual?! Carlitos baixava os braços num gesto de desânimo. Ele, que pregara já montões de partidas aos professores, não tinha agora uma única ideia genial e genuína! E a aula seria já no dia seguinte! Como a semana voara! Restava-lhe apenas aquela noite para encontrar uma ideia e arquitectar um plano.

Não pregou olho. O seu cérebro trabalhava numa cadência digna de um cientista da NASA. Virou-se e revirou-se na cama, enquanto rebuscava ideias nos cantos mais recônditos dos seus miolos e nos filmes mais divertidos que vira em toda a sua vida, mas... nada!

As horas passaram sem que se apercebesse. Lá fora, o dia ameaçava despontar. O galo cantou e o Sol não tardaria a sair de trás da linha do horizonte, já tingido de laranja. Quando os primeiros raios entraram pelas frestas da persiana da janela e vieram bater-lhe no rosto, Carlitos deu um pulo da cama e olhou consternado para o despertador: seis e um quarto! E de ideias: nicles! Deixou-se cair de costas no leito, já quase resignado a ter que fugar à aula de Canto Coral. Sim, teria que fugar, porque ir à aula e ficar no fundo da sala, isso é que não!

De repente um estrondo, vindo do quintal, assustou-o e fê-lo levantar-se, tirando-o dos seus pensamentos. Por um breve instante, uma ideia passou-lhe pela mente: “Vou assustá-la! Vou assustá-la com uma pistola de alarme!”. Deixou-se cair novamente na cama, rindo às gargalhadas e saboreando de antemão o espectáculo que deslizava na sua imaginação. “Ufa! Achei!” disse para consigo.

De um salto, pôs-se de pé e correu para a casa de banho. Tinha que se  despachar, porque embora tivesse a ideia, não tinha ainda o instrumento da sua vingança e pouco tempo lhe restava para passar por casa do António a pedir-lhe que o ajudasse a arranjar uma pistola de alarme.

Saiu de casa correndo, sem mesmo tomar o mata-bicho, sob o olhar estupefacto da mãe que, normalmente, tinha que o arrancar à força da cama. Foi assim que, naquela manhã de terça feira,  Carlitos madrugara.

        António! Antóóóniooo!– gritou, ofegante, da rua, ao chegar em baixo da janela do quarto
do amigo.

António abriu a persiana e o seu rosto meio ensonado apareceu.

        O que é, pá? Que te aconteceu a uma hora destas? – perguntou entre dois bocejos.

        Preciso da tua ajuda, meu!

        A esta hora?

        Não há tempo a perder! Tenho que arranjar uma pistola de alarme antes das oito e meia.

        Uma pistola de alarme? Para quê?

        Depois explico-te. Anda daí!

        Mas o que é que queres de mim? Não tenho nenhuma pistola de alarme! – respondeu, abanado a mão num gesto de impaciência.

        Eu sei, mas o teu primo Paulo tem uma. Vi-a no outro dia em casa dele – corroborou
Carlitos, que começava a aborrecer-se com a atitude do amigo – Anda daí, vem comigo à casa dele!

– Ah! Sim, ele tem uma – lembrou-se António enquanto esfregava um olho.

Acabou por aceder e lá foram os dois rumo à casa do Paulo, enquanto Carlitos expunha os seus planos.

        Vai ser porreiro! – disse António com um enorme sorriso.
Quando tocaram à campainha, apareceu à porta a Avó Maria que, por entre os seus buracos de dentes ausentes, lhes explicou, sibilantemente, que o Paulo saíra minutos antes para o seu treino matinal.

–... mas está aqui o Joãozinho, se ele vos pode ser útil ... – completou, gentilmente, a velha senhora.

Carlitos hesitou. Joãozinho era ainda um puto, em plena caloirice liceal. Mas, António, que lhe fez ver que já eram horas de irem andando para o liceu, convenceu-o a deixar o recado com o miúdo. Joãozinho só teria aulas a partir do segundo tempo. Esperaria pelo irmão e pedir-lhe-ia  emprestada a pistola de alarme, devendo levá-la aos dois, nas traseiras do liceu, perto dos campos de jogos, às oito e vinte e cinco em ponto! Assim ficou combinado.

Os dois compinchas foram para o liceu e decidiram guardar segredo da aventura que tramavam.

Carlitos passou a primeira hora de aulas numa excitação total, analisando os detalhes da operação. Como deveria fazer? Onde apanhar a professora a jeito? Na sala de aulas, era evidente. Mas, para ter efeito de surpresa, ele não deveria estar na sala. Também, entrar pela porta, em plena aula, quebraria o impacto. Só lhe restava uma hipótese: passar pela janela. Ora, nem mais! Até porque a arquitectura exterior do edifício permitia trepar sem problemas até à sala de Canto Coral.
O sino tocou anunciando o fim da aula. Carlitos saiu disparado, seguido por António. Joãozinho já devia estar à espera deles nos campos. Passaram a correr pelo velho Adão, que vigiava nessa manhã a porta principal do liceu. Desceram dois a dois os escassos degraus que iam do átrio ao pátio da frente e dirigiram-se, no mesmo passo de corrida, para as traseiras do estabelecimento. Ao dobrarem a esquina, não viram ninguém. O puto ainda não tinha chegado ou simplesmente não viria!

        Ora essa! – largou Carlitos, contrariado – Não me digas que ele não vem! Tinha razão quando hesitei em confiar nele. É apenas um puto!

        Calma rapaz! Ainda há tempo, pá! Temos ainda alguns minutos. O miúdo deve estar a chegar – procurou acalmá-lo o amigo.

Já se ouvia o toque para o segundo tempo, quando Joãozinho apareceu com os bofes de fora, de tanto correr.

        Só agora, pá? – disse Carlitos, arrebatando das mãos do garoto um embrulho em papel de
jornal. Enfiou-o à pressa na cintura das calças, ao mesmo tempo que dava uma olhada pelos arredores para verificar se não estavam a ser observados.

        O... o  Pa...Paulo s... só che... chegou a ca... casa há pouco – tentou explicar, sem fôlego, o Joãozinho – tive que vir a co... correr e mesmo assim es... estou atrasado pa... para a minha aula!

Dizendo isto, partiu em flecha para poder entrar no liceu antes do fecho da porta. Os dois comparsas, já mais descontraídos, dirigiram-se, então, para debaixo da janela da sala de Canto Coral. Iriam esperar que a aula começasse e, nesse lapso de tempo, examinariam a parede pela qual Carlitos teria que trepar. Repararam que a janela da sala estava apenas encostada, o que facilitaria o assalto. Identificaram, em seguida, as saliências que iriam servir de degraus para a escalada e encostaram-se à parede, à espera.
Aos primeiros acordes do piano, Carlitos começou a sua expedição. Com cautela e muito esforço, lá foi trepando parede acima, ora pegando à direita, ora à esquerda, pondo um pé aqui e outro ali, até conseguir alcançar o parapeito da janela. Só então se apercebeu que trazia ainda a pistola embrulhada no jornal. Arrancou o papel sem mesmo tirar a arma da cintura e, apoiando-se com o braço esquerdo, empurrou o vidro da janela com o outro.
A professora, sentada ao piano e de costas para ele, não se apercebeu de nada. Os alunos, ao verem Carlitos ali empoleirado, embora muito surpresos, mantiveram-se imperturbáveis, esperando e imaginando a partida que se anunciava. Continuaram a entoar a “Avé Maria” como se nada fosse.

Nisto, Carlitos puxou da pistola e apontou-a para a senhora dizendo:

        Catota, vou te matar!

Ela virou-se para trás e deu um pulo da cadeira, sem compreender o que se passava. Carlitos juntando o gesto à palavra, carregou no gatilho e o som de um tiro se fez ouvir na sala. Catota arregalou os olhos, deu um grito, levou a mão ao peito e caiu redonda no chão.
Na sala fez-se um silêncio de morte. Os alunos, boquiabertos e de olhos esbugalhados, olhavam, alternadamente, para a professora inerte no chão e o camarada pendurado à janela, com a arma em punho.

Carlitos estava petrificado. Olhou para o engenho que tinha na mão e, num gesto desesperado, atirou-o para o chão. O objecto quase caía em cima da cabeça de António, que, em baixo e ainda sorridente, ignorava a trama passada na aula. Apanhou a arma e perguntou, curioso, a Carlitos que, lívido, continuava grudado à parede da janela:

        Então, pá, como foi?

Carlitos, com um fiozinho de voz tremida, respondeu-lhe do seu poleiro:

        Não me lembro que a pistola de alarme do Paulo tivesse essa cor... Recordo-me de uma azul!

*Imagem tirada daqui: http://aerograma.afonsoloureiro.net

ENTERRARAM O SONHO DE CABRAL



Esperança acalentaste
Num futuro risonho
Terra-Mãe – Filha de África
Em tuas entranhas
Ressuscitaste o sonho
Razão do teu viver
Armaste teus filhos
Rumo à liberdade
Acreditaste na vitória
Mas os ventos mudaram

Os homens também...

Sem escrúpulos nem pejo
O teu sonho derrubaram
Num cíclico jogo de armas
Honrado seja o teu nome
Oh! Pátria mil vezes violada

De onde vem tanto ódio
Entre teus filhos amados?

Corre o sangue derramado
Abrem feridas mal saradas
Bate em teu peito a chamada
Recobre as forças Terra-mãe
Ainda é longa a caminhada
Levanta-te Guiné e desenterra o teu sonho!

Ourubro de 2004